Já
faz tempo que uma amiga me pediu para contar um pouco sobre nossa aventura de
aprender a ler. As primeiras letras, a surpresa das pequenas palavras, a alegria
de decifrar o mundo. E foi pensando nisso que ressuscitei nosso livro “O
Barquinho Amarelo”, o grande responsável por nos iniciar nesta preciosidade
chamada literatura: “Marcelo faz um barquinho. Marcelo faz um barquinho de
papel. Marcelo diz: Olhe o meu barquinho! Rosinha diz: Um barquinho amarelo.
Que beleza!”.
E
que beleza eram também aqueles dias! As fichas de cartolina coladas nas paredes
da sala do primeiro ano não nos deixavam esquecer o barquinho e todas as
palavras por onde ele navegava. Visualizando até cansar, a gente decorava a
imagem e, como mágica, a escrita nascia de nossas mãozinhas. Junto com o
barquinho, havia Cocota – a incrível galinha que botava ovos azuis –, as bolhas
de sabão e também o cavalo branco do Marquinhos, que cavalgava pela colina verde.
Dias de muito movimento, como se pode perceber. Bastava chegar com meu enorme
uniforme azul-marinho e meus sapatos de gasta camurça marrom para correr os
olhos pela sala e conferir se havia alguma nova palavra pedindo para ser
decorada. E sempre havia. O certo é que, a cada novidade, nosso vocabulário ia
ficando cada vez mais extenso. Tanto que uma hoje querida professora, num ato de
desespero, me colocou de castigo, de cara para a parede de feltro verde: “Chega
de tagarelar, menina!”.
Todo
mundo sempre diz que a gente um dia vai sentir saudade da escola. É a mais genuína
verdade. Vejo com toda nitidez a criançada correndo na poeira do pátio de terra, com os
rostos vermelhos e a boca sapecada pelo cortante frio sul-mineiro. A gritaria
na hora do recreio, quando a gente corria para o portão e comprava algodão-doce
quentinho, feito na hora. E as festas juninas? Só os ensaios já despertavam toda
a nossa alegria. Inesquecível também é a apresentação que uma vez fizemos para
comemorar a Abolição da Escravatura. Incorporando escravos, com roupas de
algodão cru e os pulsos atados por elos feitos de papel laminado dourado, nós
irradiamos todo o nosso talento para as artes cênicas. Um espetáculo
simplesmente memorável.
Mas
como em toda história há delícias e pavores, na nossa havia a mulher vestida de
branco, que morava no banheiro, quase sempre inundado. E também o querido
dentista, que já da porta da sala apontava quem seria a vítima do dia. Sem
falar de quando caí duas vezes numa mesma tarde e arranquei as tampas dos
joelhos. E no pastel encharcado de guaraná que batia ponto diariamente na minha
lancheira. Até nisso tem saudade.
Foram
cinco anos eternos, que carregaremos para sempre. Lógico que diferenças
existiam e também algumas não tão raras briguinhas, mas isso não interessava.
Nem quem era mais rico, nem quem era mais pobre. Nada disso. Éramos todos
amigos, juntos, passageiros do mesmo barquinho amarelo. Agradeço à minha amiga
que me fez trazer de volta estas lembranças e perceber o quanto estão vivas. Imagino
que o barquinho do Marcelo tenha desbotado e, quem sabe, até já afundou. É uma
pena, porque o nosso continua navegando. E com todas as suas cores.
Cíntia Nascimento
Muito interessante Cíntia. Legal quando se coloca no papel o incrível ato que é o aprender a ler e escrever
ResponderExcluirQue bom que gostou, querida Bel!
ExcluirSaudades de você e das nossas aulas.
Beijo grande.
Muito legal.
ResponderExcluirO meu livro era "O cachorrinho fujão".
um abraço.
Continue brilhando.
Obrigada, Henrique! Eu também me lembro do seu livro! Beijos.
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