terça-feira, 26 de maio de 2015

Sala dos Milagres



        Duvido que haja neste mundo uma só criança que não tenha certo medo de Aparecida do Norte. Eu tinha muito (e, se bobear, tenho até hoje). Aquela fé transbordante, as histórias de aparições sempre cercadas de sofrimento, a aura de desespero cobrindo cada cantinho da cidade. De fato hoje tudo pode me parecer tocante, bonito e até encantador do ponto de vista antropológico. Mas para uma pessoinha de cinco, seis anos, nada poderia ser mais assustador.

        Eram muitos os itens listados por meus pesadelos: a marca de ferradura na porta da Igreja Velha, os pagadores de promessas com os pés em carne viva, a Mulher-aranha e a Monga, estrelas do parquinho onde também tinha o carrinho bate-bate – só que este eu adorava! Porém havia um lugar, na então chamada Igreja Nova, que reunia todos os meus pavores: a Sala dos Milagres. 

        Consigo ainda sentir o cheiro de vela misturado com mofo, suor e toda variedade de odores que se possa imaginar. Que ninguém me entenda mal, pois hoje sei a importância de um lugar como aquele para acolher os desesperos que nos acometem nesta vida. Mas, naquela época, a Sala dos Milagres era para mim uma representação de tudo o que havia de mais tenebroso. Como se já não bastassem as cabeças, os pés e os braços de cera emoldurados por infinitos chumaços de cabelos trançados, amarrados com fita e envoltos num mar de objetos cotidianos, um detalhe tornou-se meu carrasco oficial. Foi durante uma das minhas muitas visitas ao santuário que vi, num quadro na parede, minha camiseta de malha, aquela listradinha de amarelo e vermelho. 

        Não era bem a minha, mas era idêntica. Foi só chegar perto para constatar que junto à peça de roupa estava uma fotografia antiga retratando uma casa queimada e, do lado, um garoto da minha idade, tristonho, todo enfaixado. E o pior: a camiseta estava chamuscada e manchada de sangue. Pois bem. Eu ainda não sabia ler, mas foi só juntar os elementos para entender que aquele pobre amiguinho estava vestindo a minha camiseta – não a minha, mas a dele – quando quase morreu carbonizado. Pronto: foi o suficiente para eu perder a viagem remoendo todas as cenas daquela quase tragédia.  

– Não vou mais vestir roupa velha! – foi o que sentenciei aos prantos, quando retornei daquele desventurado passeio. 

Claro que ninguém entendeu nada. Simplesmente foi o jeito que encontrei de tentar manter distância da camiseta macabra. De tão impressionada, acordei várias vezes lutando contra o fogo. E ainda discursava para todo mundo que eu tinha medo de morrer.

– Mas por quê? – era o que todos queriam saber. E quem disse que eu revelava o motivo?

Aí virei tema de inquietação familiar. Minha mãe até me levou pra benzer na casa do padre. Sem sucesso. Nada conseguia me tirar daquele estado de obsessão pelos assuntos da morte. Só o tempo. 

Ainda voltei muito à Aparecida depois do ocorrido, já que a cidade era o destino anual que pontuava a minha infância. Sorte que coisas muito boas também faziam parte do passeio. A festa dos primos na Kombi lotada, as fotos de lambe-lambe na praça, os brinquedos e outras lembrancinhas tantas que a gente comprava por lá. Sem falar na gigantesca passarela, que parecia uma coisa de outro planeta. Agora já faz tempo que não vou, mas sei que a cidade está mudada. A Basílica ganhou uma imensa infraestrutura para receber os romeiros com seus milhares de pedidos e agradecimentos pelas bênçãos colhidas. Longe de mim dizer que não voltarei. Tenho vontade de conferir o que o tempo fez com a veracidade das minhas lembranças. Talvez um dia. Só acho melhor não chegar muito perto da Sala dos Milagres. 


Cíntia Nascimento

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