terça-feira, 30 de junho de 2015

O barquinho amarelo


         Já faz tempo que uma amiga me pediu para contar um pouco sobre nossa aventura de aprender a ler. As primeiras letras, a surpresa das pequenas palavras, a alegria de decifrar o mundo. E foi pensando nisso que ressuscitei nosso livro “O Barquinho Amarelo”, o grande responsável por nos iniciar nesta preciosidade chamada literatura: “Marcelo faz um barquinho. Marcelo faz um barquinho de papel. Marcelo diz: Olhe o meu barquinho! Rosinha diz: Um barquinho amarelo. Que beleza!”.

         E que beleza eram também aqueles dias! As fichas de cartolina coladas nas paredes da sala do primeiro ano não nos deixavam esquecer o barquinho e todas as palavras por onde ele navegava. Visualizando até cansar, a gente decorava a imagem e, como mágica, a escrita nascia de nossas mãozinhas. Junto com o barquinho, havia Cocota – a incrível galinha que botava ovos azuis –, as bolhas de sabão e também o cavalo branco do Marquinhos, que cavalgava pela colina verde. Dias de muito movimento, como se pode perceber. Bastava chegar com meu enorme uniforme azul-marinho e meus sapatos de gasta camurça marrom para correr os olhos pela sala e conferir se havia alguma nova palavra pedindo para ser decorada. E sempre havia. O certo é que, a cada novidade, nosso vocabulário ia ficando cada vez mais extenso. Tanto que uma hoje querida professora, num ato de desespero, me colocou de castigo, de cara para a parede de feltro verde: “Chega de tagarelar, menina!”.

         Todo mundo sempre diz que a gente um dia vai sentir saudade da escola. É a mais genuína verdade. Vejo com toda nitidez a criançada correndo na poeira do pátio de terra, com os rostos vermelhos e a boca sapecada pelo cortante frio sul-mineiro. A gritaria na hora do recreio, quando a gente corria para o portão e comprava algodão-doce quentinho, feito na hora. E as festas juninas? Só os ensaios já despertavam toda a nossa alegria. Inesquecível também é a apresentação que uma vez fizemos para comemorar a Abolição da Escravatura. Incorporando escravos, com roupas de algodão cru e os pulsos atados por elos feitos de papel laminado dourado, nós irradiamos todo o nosso talento para as artes cênicas. Um espetáculo simplesmente memorável.

         Mas como em toda história há delícias e pavores, na nossa havia a mulher vestida de branco, que morava no banheiro, quase sempre inundado. E também o querido dentista, que já da porta da sala apontava quem seria a vítima do dia. Sem falar de quando caí duas vezes numa mesma tarde e arranquei as tampas dos joelhos. E no pastel encharcado de guaraná que batia ponto diariamente na minha lancheira. Até nisso tem saudade.

         Foram cinco anos eternos, que carregaremos para sempre. Lógico que diferenças existiam e também algumas não tão raras briguinhas, mas isso não interessava. Nem quem era mais rico, nem quem era mais pobre. Nada disso. Éramos todos amigos, juntos, passageiros do mesmo barquinho amarelo. Agradeço à minha amiga que me fez trazer de volta estas lembranças e perceber o quanto estão vivas. Imagino que o barquinho do Marcelo tenha desbotado e, quem sabe, até já afundou. É uma pena, porque o nosso continua navegando. E com todas as suas cores.

Cíntia Nascimento
 
         

4 comentários:

  1. Muito interessante Cíntia. Legal quando se coloca no papel o incrível ato que é o aprender a ler e escrever

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    1. Que bom que gostou, querida Bel!
      Saudades de você e das nossas aulas.
      Beijo grande.

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  2. Muito legal.
    O meu livro era "O cachorrinho fujão".
    um abraço.
    Continue brilhando.

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  3. Obrigada, Henrique! Eu também me lembro do seu livro! Beijos.

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