quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Liberdade



Perguntei à minha japonesinha
se não é triste ver o mundo assim,
sempre presa atrás do vidro.

Aqui posso ser eu mesma ­– ela rebateu.
Alguma outra liberdade
pode ter tanto sentido?

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Dama-da-noite



Hoje uma ventania daquelas varreu a rua e atapetou de folhas a varanda que eu havia acabado de limpar. Foi tão grande o estrago, que até o vento ficou com pena de mim. Só pode ter sido por isso que ele me ofereceu como recompensa um presente valioso que invadiu o ar: o perfume da dama-da-noite. Lógico que o perdão foi imediato. Mas o que o vento não sabe é que o mimo trouxe uma espécie de passagem de ida – ou de volta – para uma certa praça, em frente  a uma certa igreja, cenário das primeiras noites quentes de uma menina do interior.

Era na praça (ou no jardim, como muitos gostavam de falar, inclusive eu) que os sábados e os domingos recebiam jovens, velhos, crianças, amigos, desafetos e toda espécie de pessoas dali mesmo da nossa pequena cidade ou dos arredores. Criava-se um vai e vem de gente disposta a colocar a conversa em dia, conhecer as últimas fofocas, namorar, paquerar e – quem sabe? – encontrar a alma gêmea. Tudo isso emoldurado por uma fila de pipoqueiros que convivia sem qualquer tipo de discórdia. Enquanto isso, para quem era criança, as noites na praça representavam mais que uma compensação por uma longa semana de escola, tédios e pequenos afazeres domésticos. 

Sempre depois da missa, é claro, aquele palco rodeado de árvores, flores e bancos de cimento recebia as melhores brincadeiras: pega-pega, corrente-pega-gente (quem tem medo sai da frente!), esconde-esconde, balança-caixão, pera, uva ou maçã. E também teve a vez em que, do nada, um pula-pula gigante se instalou bem no meio do nosso pedaço, trazendo dias e noites inesquecíveis. A verdade é que não havia limite para a diversão. Ao mesmo tempo em que a criançada suava a roupinha de festa, recarregava as baterias com uma infinidade de delícias. Canudinho de doce-de-leite, amendoim torrado, pirulito de guarda-chuva, sorvete na casquinha e pipoca, sempre a pipoca. Sem falar na roleta que a gente rodava, em frente ao cinema, para saber se ia saborear um biju ou, dependendo da boa sorte, até três.

Mas como o tempo não aceita que ninguém fique para trás, a brincadeira mudava de lugar assim que a gente ia crescendo. O centro da praça ficava pequeno e a molecada passava então a rodar na calçada. Meninos de um lado, meninas do outro. E, a cada encontro daquela ciranda, surgiam as primeiras trocas de olhares, sinais certeiros de que a infância estava mesmo se despedindo. Já o último ato daquele balé sincronizado era apresentado na rua em volta da praça, onde a vida seguia seu rumo. Muitos casais se formaram, floresceram e deram frutos. Tantos outros duraram pouco, é verdade.  Mas nem por isso são menos importantes. Também figuram nesta história.

Um dia decidi que era hora de circular em outras praças e dei adeus ao meu querido jardim. Feliz sou eu que em noites especiais posso receber aqui em casa, tão longe, personagens ilustres como esta dama florida, que tem cheiro de saudade. Seja bem-vinda, senhora dama-da-noite! Não tenha dúvidas de que estarei disposta a rodopiar com você pela minha querida praça. Esta noite e para sempre. 


Cíntia Nascimento

terça-feira, 30 de junho de 2015

O barquinho amarelo


         Já faz tempo que uma amiga me pediu para contar um pouco sobre nossa aventura de aprender a ler. As primeiras letras, a surpresa das pequenas palavras, a alegria de decifrar o mundo. E foi pensando nisso que ressuscitei nosso livro “O Barquinho Amarelo”, o grande responsável por nos iniciar nesta preciosidade chamada literatura: “Marcelo faz um barquinho. Marcelo faz um barquinho de papel. Marcelo diz: Olhe o meu barquinho! Rosinha diz: Um barquinho amarelo. Que beleza!”.

         E que beleza eram também aqueles dias! As fichas de cartolina coladas nas paredes da sala do primeiro ano não nos deixavam esquecer o barquinho e todas as palavras por onde ele navegava. Visualizando até cansar, a gente decorava a imagem e, como mágica, a escrita nascia de nossas mãozinhas. Junto com o barquinho, havia Cocota – a incrível galinha que botava ovos azuis –, as bolhas de sabão e também o cavalo branco do Marquinhos, que cavalgava pela colina verde. Dias de muito movimento, como se pode perceber. Bastava chegar com meu enorme uniforme azul-marinho e meus sapatos de gasta camurça marrom para correr os olhos pela sala e conferir se havia alguma nova palavra pedindo para ser decorada. E sempre havia. O certo é que, a cada novidade, nosso vocabulário ia ficando cada vez mais extenso. Tanto que uma hoje querida professora, num ato de desespero, me colocou de castigo, de cara para a parede de feltro verde: “Chega de tagarelar, menina!”.

         Todo mundo sempre diz que a gente um dia vai sentir saudade da escola. É a mais genuína verdade. Vejo com toda nitidez a criançada correndo na poeira do pátio de terra, com os rostos vermelhos e a boca sapecada pelo cortante frio sul-mineiro. A gritaria na hora do recreio, quando a gente corria para o portão e comprava algodão-doce quentinho, feito na hora. E as festas juninas? Só os ensaios já despertavam toda a nossa alegria. Inesquecível também é a apresentação que uma vez fizemos para comemorar a Abolição da Escravatura. Incorporando escravos, com roupas de algodão cru e os pulsos atados por elos feitos de papel laminado dourado, nós irradiamos todo o nosso talento para as artes cênicas. Um espetáculo simplesmente memorável.

         Mas como em toda história há delícias e pavores, na nossa havia a mulher vestida de branco, que morava no banheiro, quase sempre inundado. E também o querido dentista, que já da porta da sala apontava quem seria a vítima do dia. Sem falar de quando caí duas vezes numa mesma tarde e arranquei as tampas dos joelhos. E no pastel encharcado de guaraná que batia ponto diariamente na minha lancheira. Até nisso tem saudade.

         Foram cinco anos eternos, que carregaremos para sempre. Lógico que diferenças existiam e também algumas não tão raras briguinhas, mas isso não interessava. Nem quem era mais rico, nem quem era mais pobre. Nada disso. Éramos todos amigos, juntos, passageiros do mesmo barquinho amarelo. Agradeço à minha amiga que me fez trazer de volta estas lembranças e perceber o quanto estão vivas. Imagino que o barquinho do Marcelo tenha desbotado e, quem sabe, até já afundou. É uma pena, porque o nosso continua navegando. E com todas as suas cores.

Cíntia Nascimento
 
         

terça-feira, 26 de maio de 2015

Sala dos Milagres



        Duvido que haja neste mundo uma só criança que não tenha certo medo de Aparecida do Norte. Eu tinha muito (e, se bobear, tenho até hoje). Aquela fé transbordante, as histórias de aparições sempre cercadas de sofrimento, a aura de desespero cobrindo cada cantinho da cidade. De fato hoje tudo pode me parecer tocante, bonito e até encantador do ponto de vista antropológico. Mas para uma pessoinha de cinco, seis anos, nada poderia ser mais assustador.

        Eram muitos os itens listados por meus pesadelos: a marca de ferradura na porta da Igreja Velha, os pagadores de promessas com os pés em carne viva, a Mulher-aranha e a Monga, estrelas do parquinho onde também tinha o carrinho bate-bate – só que este eu adorava! Porém havia um lugar, na então chamada Igreja Nova, que reunia todos os meus pavores: a Sala dos Milagres. 

        Consigo ainda sentir o cheiro de vela misturado com mofo, suor e toda variedade de odores que se possa imaginar. Que ninguém me entenda mal, pois hoje sei a importância de um lugar como aquele para acolher os desesperos que nos acometem nesta vida. Mas, naquela época, a Sala dos Milagres era para mim uma representação de tudo o que havia de mais tenebroso. Como se já não bastassem as cabeças, os pés e os braços de cera emoldurados por infinitos chumaços de cabelos trançados, amarrados com fita e envoltos num mar de objetos cotidianos, um detalhe tornou-se meu carrasco oficial. Foi durante uma das minhas muitas visitas ao santuário que vi, num quadro na parede, minha camiseta de malha, aquela listradinha de amarelo e vermelho. 

        Não era bem a minha, mas era idêntica. Foi só chegar perto para constatar que junto à peça de roupa estava uma fotografia antiga retratando uma casa queimada e, do lado, um garoto da minha idade, tristonho, todo enfaixado. E o pior: a camiseta estava chamuscada e manchada de sangue. Pois bem. Eu ainda não sabia ler, mas foi só juntar os elementos para entender que aquele pobre amiguinho estava vestindo a minha camiseta – não a minha, mas a dele – quando quase morreu carbonizado. Pronto: foi o suficiente para eu perder a viagem remoendo todas as cenas daquela quase tragédia.  

– Não vou mais vestir roupa velha! – foi o que sentenciei aos prantos, quando retornei daquele desventurado passeio. 

Claro que ninguém entendeu nada. Simplesmente foi o jeito que encontrei de tentar manter distância da camiseta macabra. De tão impressionada, acordei várias vezes lutando contra o fogo. E ainda discursava para todo mundo que eu tinha medo de morrer.

– Mas por quê? – era o que todos queriam saber. E quem disse que eu revelava o motivo?

Aí virei tema de inquietação familiar. Minha mãe até me levou pra benzer na casa do padre. Sem sucesso. Nada conseguia me tirar daquele estado de obsessão pelos assuntos da morte. Só o tempo. 

Ainda voltei muito à Aparecida depois do ocorrido, já que a cidade era o destino anual que pontuava a minha infância. Sorte que coisas muito boas também faziam parte do passeio. A festa dos primos na Kombi lotada, as fotos de lambe-lambe na praça, os brinquedos e outras lembrancinhas tantas que a gente comprava por lá. Sem falar na gigantesca passarela, que parecia uma coisa de outro planeta. Agora já faz tempo que não vou, mas sei que a cidade está mudada. A Basílica ganhou uma imensa infraestrutura para receber os romeiros com seus milhares de pedidos e agradecimentos pelas bênçãos colhidas. Longe de mim dizer que não voltarei. Tenho vontade de conferir o que o tempo fez com a veracidade das minhas lembranças. Talvez um dia. Só acho melhor não chegar muito perto da Sala dos Milagres. 


Cíntia Nascimento

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Só porque




Porque todo abraço é tão forte como se fosse sempre o último.

Porque nenhuma madrugada é longa o bastante pra curar a dor que eu não quero que você sinta.

Porque eu pensava que conhecia todas as cores do mundo, até você abrir os olhos.

Porque são seus os passos que ouço muito antes da chegada.

Porque se antigamente eu pulava sem paraquedas, agora nem chego perto do penhasco: a vida não é mais só minha.

Porque se hoje disfarço meus temores pra você passear com amigos, amanhã vou esmagar todos os meus medos pra você poder seguir sozinho. 

Porque o certo é que nada terá qualquer vestígio de sentido se você não for feliz. 

Mas é só porque eu sou sua.

Só porque eu sou mãe. 


Cíntia Nascimento