segunda-feira, 3 de junho de 2013

O presente



Diziam que ali tinha sido um cemitério. E de fato era verdade. Ficava atrás da igreja matriz, coisa tão comum em cidades do interior, principalmente nas de Minas. A construção antiga, abandonada, sinistra, já causava medo por si só. Nem precisava das histórias, que eram muitas. E a principal delas foi meu pesadelo por meses: no casarão, moravam duas bruxas.

Bem no alto da mansão de apenas um andar, podia-se adivinhar o que as letras gastas um dia indicaram. Acho que é porque abrigou, no passado, um ponto comercial ou coisa assim. E pra completar o ar à La Hitchcock, uma estátua de leão, que fazia jus a qualquer gárgula europeia, estava sempre à espreita de algum desavisado indefeso. Uma escadaria – a casa ficava no alto da calçada – levava até portas e janelas sempre fechadas. O que se via, vez ou outra, era uma luzinha oscilante, que trazia sinal de vida do interior da casa. Verdade era que criança alguma se atrevia a espiar de perto o que realmente acontecia naquele lugar. Nem a mais espevitada, nem a mais curiosa. Nem eu.


       Não bastasse o pavor que aquele pequeno castelo oitocentista me causava, uma prima fez o favor de contar algumas de suas histórias. Falou que lá moravam duas irmãs velhinhas, muito velhinhas mesmo. E que a distração das duas era procurar ossos no quintal. O tal que, no passado, abrigara o tenebroso cemitério. E pra completar, que elas guardavam os ossos embaixo da cama! Agora, do alto dos meus oito, nove anos, eu me perguntava qual a razão de fato tão cadavérico. Seria pra fazer bruxarias? Deus me livre! E ficava remoendo os ossos, ou melhor, os casos, na minha cabecinha, com os olhos estatelados, noites afora.  Puro medo.


O curioso é que fui pega pelo destino. Invariavelmente, eu fazia umas comprinhas cotidianas para minha mãe, num mercadinho próximo ao famigerado casarão. Isso me obrigava a passar em frente a ele, toda vez. E numa dessas, eu já quase vencia minha peregrinação, quando ouvi um som fininho, fraco, lá de dentro da mansão: 


– Ei, menina! Vem aqui um pouquinho.


 Pronto! - pensei. Era o meu fim. Justo eu que temia tanto aquele cenário, estava prestes a ser abduzida pelas bruxas. Não sei o que me deu. Poderia ter saído correndo sem olhar pra nada. Mas fiquei. E o pior: fui em direção à porta de onde vinha o sussurro. Hoje sei que fui impedida de fugir por minha índole de criança boazinha. Logo, a porta descascada se abriu e, de dentro, apareceu uma senhora bem-vestida, cabelos brancos penteados, baixinha. 


– Por favor, minha filha, você poderia buscar um litro de leite no mercado pra mim? – foi apenas o que ela disse. Nada de abracadabras, salamaleques, ou coisas do tipo. Estendi minha mãozinha e pequei a caneca surrada, ainda suja de leites passados. Junto, veio uma nota, de cujo valor não me lembro. Sem emitir um só som, acenei que sim com a cabeça e saí em disparada.


Inebriada pelo destino, entrei no Mercado Municipal, onde eu nunca tinha ido sozinha, procurei a leiteria e recitei o meu pedido, ou melhor, o da senhorinha. 


– Ah! É pra dona Gracinha, né? – disse o vendedor, reconhecendo o utensílio.


  Sim, era pra dona Gracinha. Curioso é que ouvir este nome me tirou levemente do estado de torpor. Não era este o que eu imaginava pra ela. Morgana, Cuca, Malévola, talvez. Mas Gracinha era nome de vovó, não de bruxa.


 O fato é que voltei para o casarão equilibrando o leite na caneca. E, já mais fortalecida, dei umas batidinhas na porta, que se abriu trazendo de volta aquela criaturinha adorável. Enquanto ela me olhava, estiquei um olho pra dentro da casa, tentando achar alguma vassoura, caldeirão, animal empalhado, ou qualquer objeto com ares de feitiçaria que justificasse minhas noites em claro. Nada disso. O que vi foram porta-retratos ostentando tempos mais felizes, vaso de flor e baú, ao lado de um sofá antigo. Coisas que poderiam estar na casa da minha ou de qualquer avó. Também não percebi sinais da outra bruxinha.


– Obrigada, minha filha. Você gosta de balas? –  foi a frase que me fisgou da compenetração. Mas minha voz ainda não tinha voltado. De novo acenei que sim e ela me entregou docemente duas moedas: 


– Então, compre umas balas!


 Que bom que consegui balbuciar um “obrigada”. Depois pensei que não deveria ter aceitado. Imagine só! Não precisava de recompensa. Sem saber, ela já havia quebrado um feitiço e me dado um presente. Mas comprei as balas assim mesmo.


O melhor é que, daquele episódio em diante, nunca mais tive medo de quase nada. Se bruxas existiam na minha pequena cidade, definitivamente, não moravam naquele casarão.


Cíntia Nascimento

5 comentários:

  1. Um texto delicado, bom de se ler, gostaria até que tivesse continuação. O olhar de medo e de ternura da criança com o desconhecido é sempre cativante
    bel

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  2. Que bom que gostou, Bel! Sua opinião é muito importante para mim. Beijos.

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  3. Lindo conto. Por essas e outras que não se deve julgar alguém antes de se conhecer. Lembro que aqui na minha cidade, quando era criança, os colegas de escola comentavam sobre uma velha senhora que vivia numa casinha bem humilde, no caminho da escola. Diziam que ela era uma bruxa, que tinham visto um caixão voador(!) dentro da casa e por aí vai - inclusive tinham desafios de quem tinja coragem de ir até a casa e espiar pela janela. Tudo brincadeira de crianças assustadas rsrs A senhorinha não fazia mal a ninguém...

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  4. Muito obrigada pelo comentário, Lucas!
    Histórias desse tipo povoam as infâncias de todos nós e deixam saudades. Abraço!

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