terça-feira, 18 de junho de 2013

Emília





       – Pai, que horas são?

       – São cinco horas. Por quê?

       Como assim, “por quê”? Não era óbvio? Aquela era a data mais especial de todas: 24 de dezembro, a fabulosa véspera de Natal. Digamos que, durante os primeiros dez anos da minha infância, a vida se resumia em a véspera de Natal e o resto. Mas o melhor de tudo não era o dia e sim a noite, quando o presente aparecia. Só que naquele ano as horas estavam se arrastando, pareciam paradas mesmo. E eu ali, esperando sentada no banquinho da cozinha, contando os segundos para o momento mágico.

       O fato é que eu tinha oito anos de idade e desde fevereiro já sabia o que queria do bom velhinho: a boneca Emília do “Sítio do Picapau Amarelo” – se ele trouxesse junto um par de patins (podia ser de plástico, mesmo), eu também ficaria muito grata. Mas não queria uma Emília daquelas fakes, feitas à mão (que hoje acho lindas). Nada disso. Tinha que ser a da Estrela, com correntinha, medalhinha e tudo.

Pois bem. Depois de cumprir uma maratona que incluiu muita lição de casa sem reclamar, obediência à avó, pai, mãe e primas, horas vigiando para que meu irmão caçula não se estabacasse da escada ou de qualquer outro lugar ameaçador, louça lavada e roupas estendidas no varal, meus pais deram o veredicto: eu ganharia a Emília! Nem acreditei.

     Nisso já era dezembro. Todas as colegas da escola e da vizinhança receberam com gosto (e com uma certa inveja, é claro) a notícia de que eu seria a futura proprietária da famosa e espevitada boneca que fazia parte de nossos mais puros sonhos:

       – Será que ela fala de verdade? – perguntou Marcinha.

       – Acho que não. Mas não tem importância. Eu falo por ela – respondi.

       Então passei os dias a imaginar as mil e uma aventuras que viveria com minha Emília: subir no pé de laranjeira do quintal da minha avó, pular amarelinha, brincar de esconde-esconde. Também poderia carregá-la na garupa da bicicleta, servir chazinho e fazer comidinha no meu minifogão de lenha. E ainda nadar na piscina. “Não. Na piscina não pode. Ela é feita de pano”, lembrei a tempo.

    Daí que aquele último mês do ano não tinha fim. Até caminha pronta, com cobertor e tudo, já esperava por Emília. Mas o dia 24 parecia ter fugido do calendário de 1979, até que enfim chegou. Custou, é verdade, mas raiou azul, fresco, iluminado, como os dias especiais devem ser.

 Nem bem amanheceu e eu já estava de pé para o tradicional e inesquecível passeio com o padrinho. É que ele levava a sobrinhada toda pra comprar um presentinho no Natal. Podia ter coisa mais gostosa? Depois, o almoço simples, em casa mesmo. “Nada de comer muito agora. O melhor fica pra de noite”, era o que sempre dizia minha mãe.  Mas e esse “de noite” que não chegava?

– Pai, que horas são?

– Filha, você acabou de perguntar. São cinco e quinze.

Que remédio? Tinha que me segurar pra não explodir de ansiedade, até por volta das nove da noite, quando o nosso Papai Noel passava, deixava os presentes e partia antes que a gente pudesse agradecer.  É verdade que naquele ano eu já sabia que o Noel era meus pais mesmo. Por acaso, no Natal passado, eu tinha com tristeza constatado que uma caixa grande, coberta por uma toalha, colocada em cima do guarda-roupa da minha mãe, apareceu milagrosamente embaixo da minha cama. “Foi o Papai Noel!”, anunciaram. Mas somei dois mais dois e vi desmoronar meu mundinho natalino. Tampouco dei sinal da descoberta para não magoar meus pais e não acabar com a festa do meu irmão. Porém meu Papai Noel partiu para sempre com trenó e renas a tiracolo.

Mas quem se importava com isso? Eu queria saber era da Emília. Depois que voltamos do beijo de boas festas na casa de minha avó, os convidados começaram enfim a chegar para a ceia. Apenas dois ou três casais amigos.

– Nossa! Como você cresceu! – repetia a amiga da minha mãe, como em outros natais.

 Agradeci sem nem olhar na cara dela. “Cadê a Emília?”, era só o que eu pensava.  Conversa vai e volta, uma comilança só – que em Minas, não há miséria – , e nada de boneca de pano. Lá estava eu esperando de novo sentada, pés inquietos, nervos pelo avesso. Até que meu pai despistou e deu aquela conhecida saidinha da sala. Agora vai! Fechei os olhos e contei comigo até dez, vinte, sessenta. E já ia desistindo quando ouvi os berros do meu irmão:

– O Papai Noel passou! O Papai Noel passou!

Atropelei o que havia pela frente: cadeira, pé de visita, vaso, almofada. Inacreditável como mergulhei de cabeça embaixo da minha cama e me deparei com aquela espécie de miragem. Mais parecendo um diabo da Tasmânia, rasguei o papel de presente da conhecida loja de brinquedos da cidade. Pronto: estava cara a cara com minha Emília. Minha, só minha. Abracei a boneca, beijei, rodopiei, ri sozinha e depois a exibi orgulhosa para todos que estavam lá em casa. Enfim ela havia chegado para alegrar meus dias e era muito mais do que eu tinha imaginado. Cabelo de lã amarela e vermelha, vestidinho amarelo com babado, olhos arregalados e uma boca bem vermelhinha, com a língua quase para fora. Um sonho!

Verdade é que logo deixei a Emília de lado, sentadinha na cadeira, pra abrir outros presentinhos, incluindo os patins de plástico (com os quais nunca consegui sair do lugar)! Até me distraí, confesso. A euforia tinha passado. Coisas de criança. Mas, apesar de entretida com outras novidades, sempre dava uma espiada pra ver se Emília não tinha fugido.

E não fugiu. Durante todos estes anos me acompanhou de cidade em cidade, de faculdade a trabalhos, de namoros a casamento, de vazios à alegria de ser mãe. E olha que continua sentadinha. Só que agora está na prateleira de cima do armário, esperando para ser lembrada. Não sabe que nunca foi esquecida.


Cíntia Nascimento

7 comentários:

  1. Mais um belo texto da minha comadre. Lembrei da minha risonha Gui-Gui, que hoje já não sei mais por onde anda. Minha mãe a deu quando eu era adolescente, sem me avisar. Espero que tenha alegrado a vida de alguma outra criança! Dela agora só tenho as lembranças...
    Obrigada por me fazer lembrar dela, Cíntia!
    bjos da Dayse

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    1. Que bom que lembrou da sua Gui-Gui, Dayse! Essas nossas companheiras merecem mesmo ser lembradas! Bjos.

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  2. Que linda história, dá até pra te imaginar sentadinha batendo os pés. Adorei!
    bel

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