sexta-feira, 21 de junho de 2013

Apenas Neide





Neide era o nome dela. E chegou lá em casa encabulada, daquele jeito de quem passa a vida pedindo desculpas por ter vindo ao mundo. Era para ser diarista, recomendada pelo zelador: ”É de muita confiança”, garantiu. E era mesmo. Neide trazia a confiança estampada no jeito e na cara da cor da Bahia. 

O bom é que foi ficando. Duas vezes por semana, eu tinha a alegria suprema da dona de casa que pode ter alguém para ajudar. O chato era que Neide não era de conversa. Entrava quieta, saía em silêncio. Logo descobri que seu forte eram os gestos. Isso foi quando chegou com um maço de folhas para chá, que comprou na feira perto de sua casa: “É para sarar a tosse do menino”, receitou. Outra vez, trouxe de casa um pouco do produto que usava para passar no chão: “Deixa a casa cheirosa”, sentenciou como especialista que era.

Claro que eu queria saber mais sobre Neide. Meus cafés das terças e quintas eram acompanhados de uma observação minuciosa de sua postura passando roupa. Ela alisava cada peça com uma concentração de quem analisava a vida, lembrava o passado, temia o futuro.  É óbvio que percebia meu interesse, mas fingia que não. Até que, cansada de tanta curiosidade, resolveu falar.

E foi contando. Caprichou no sotaque com cheiro de cacau para contar que há alguns anos tinha deixado o casal de filhos com a mãe na roça, perto de Feira de Santana, para fugir daquela que chamavam de vida e sobreviver em São Paulo. Assim como fizeram e fazem seus irmãos de sangue e de terra. Depois de muita roupa passada e casa encerada, conseguiu trazer os filhos pra perto dela. E como ela cuidava daqueles filhos de mãe solteira! O menino, coitado, tinha que bater o ponto todo dia, ligando para ela assim que chegava da escola. Já a moça, em idade perigosa, era todas as noites escoltada por Neide, da saída do colégio até em casa – casa que Neide conseguiu comprar juntando o dinheiro que escavou na pauliceia. “O Senhor me ajudou!”, não cansava de repetir. Aliás, o auge de seus passeios era ir ao culto na igreja evangélica, nos fins de semana. Por isso não foi difícil entender sua angústia quando, tempos mais tarde, veio me contar que a garota estava grávida, aos 17 anos, repetindo uma trajetória que ela conhecia bem.

Mas havia dias em que Neide era insuportavelmente compenetrada. A cara amarrada denunciava os percalços que carregava sozinha nas costas, sem pausa pra descanso. E instalava-se aquele silêncio absoluto que nem o estrondoso aspirador de pó conseguia quebrar.  Eu até arriscava umas historinhas engraçadas, mas nada. Nem um vestígio de alegria. Nestas ocasiões, até minha gata, dada que só vendo, não era muito de ousadias com Neide. Seu sexto sentido felino avisava que era melhor ficar longe. Nos dois anos em que trabalhou lá em casa, se vi Neide sorrir umas cinco vezes foi muito. E quando por um milagre isso acontecia, eu festejava, sem ela saber, é claro. Mas longe de ser uma pessoa triste. Era apenas Neide. 

Quando contei que teria que me mudar para outra cidade, vi a tristeza nos olhos de Neide e fiquei feliz. Não feliz por sua tristeza, mas por constatar que ela gostava de mim, apesar dos anos de rabugice. E então me ajudou a encaixotar prato por prato, livro por livro, lembrança por lembrança. Fiz questão de deixar com ela um pouco de tudo. E hoje me conforta saber que deve se lembrar de mim, nas pequenas coisas do dia a dia. Quando pega uma panela, quando veste uma blusa para ir à igreja e, principalmente, quando vê sua neta se divertindo com os brinquedos que ganhou lá em casa. No dia da minha partida, largou os afazeres da casa da vizinha para ir me dar um abraço de despedida. Mas nada de lágrimas, lamentos, fricotes. Nada disso. Apenas um abraço. Um abraço de quem estava acostumada com perdas. Um abraço de Neide. 

Vida que segue e eu já não vejo nem falo com Neide há mais de dois anos. Mas soube que ela está bem, apesar de mais fraca. É que, quando parti, carreguei comigo um pouco de sua força. Mas só porque sabia que não ia lhe fazer falta. Ela tem de sobra.

11 comentários: