sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Riacho


Algumas pedrinhas eram macias e redondas. Outras, nem tanto. Mas o que eu mais amava era a temperatura da água, que trincava meus dedos de menina. Molhar os pés no riacho. Era este o auge da maioria dos roteiros que minha avó traçava, vez ou outra, para visitar a família e os amigos que decidiram não abandonar a vida da roça. Se houvesse um riozinho, um filete cristalino que fosse, eu já sabia que o passeio seria um sucesso. 


Pouco tempo de poeira e a gente já era logo recebida por gansos e cachorros, arautos dos quais nenhuma visita passa impune. Do terreiro já vinha o cheiro de café moído e coado na hora, sentenciando que todos eram bem-vindos. Delícia era aquela xícara esmaltada colorida que rodeava os bolinhos, meus quitutes preferidos. De fubá, de chuva, de polvilho. E quando tinha milho assado no forno do fogão de lenha? Aí era a glória.


Sempre do alto do alpendre ou nas cadeiras da varanda que comadres e compadres papeavam sobre o passado, aquele tempo tão bom, como se ignorassem que o presente um dia estaria na mesma categoria. Também preenchiam a pauta da tarde os filhos que se casaram, bebês que vingaram, conhecidos que não voltariam mais. O bom é que enquanto minha avó – já então uma mulher da cidade – suspirava nostalgia e se interava das más e das boas-novas, eu me misturava às crianças locais, estatelando o pé no chão, sem chinelos e sem medo. Era um correr enlouquecido na grama verdinha entremeado por cambotas (que no dicionário sul-mineiro significa cambalhotas). Num fôlego só, a gente colhia jabuticaba, catava coquinho, bebia água da bica, visitava os porcos gordos no chiqueiro, embalava no colo patinhos nascidos quase ontem, apostava corrida com as galinhas, explorava os cupinzeiros, mirava o fundo do poço e, é claro, molhava os pés no riacho. Um vendaval só dissipado quando era divulgada a impiedosa notícia de que a hora de ir embora havia chegado. “Outro dia a gente volta”, prometia minha avó. E o melhor é que voltava.


Ainda hoje, quando me pego namorando de longe as montanhas de Minas, consigo avistar as paredes brancas de cal com janelas de céu desbotado. Parada na porta está a dona da casa, tão digna, hospitaleira, que acena até o carro desaparecer na estrada de terra. Depois entra para retomar a lida, com o sorriso de quem teve um bom dia. E eram mesmo bons, ótimos dias. Os de minha avó colhiam lembranças. E os meus plantavam saudades. 


Cíntia Nascimento

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O visitante




Lá fora ainda é cedo e já tem um visitante tocando a campainha. Espio pelo olho mágico e fico com medo de abrir. Não que ele pareça feio, longe disso. Mas é certo que é assustador, apesar de jovem, novinho em folha. Meu receio é que junto com ele, escondidas no corredor, possam estar companhias que não sei se poderei acomodar. E se elas pedirem coisas que não conseguirei atender? E se bagunçarem minha casa, mudarem os móveis de lugar? 

Também não quero abrir porque penso que não é hora de receber um novo visitante. Além do mais, outro dia mesmo acolhi outra visita do tipo e ainda estou analisando se o resultado foi bom.  É que ela me trouxe de presente uma listinha com algumas tarefas estranhas. Viajar mais, comer melhor, sorrir demais, lamentar de menos, ganhar mais dinheiro. Ideias que transitaram pelos meus dias e foram perdendo força a cada virada de página do calendário, sem que eu tivesse tempo de digeri-las. Pois é. Cedo demais para receber uma nova lista.

Despisto, tento olhar pelo buraco da fechadura e vejo o visitante lá, paradinho, no mesmo lugar. Está certo: decidi. Vou deixá-lo entrar, nem que seja só um pouquinho. Que mal pode haver? Mas, desta vez, acho que vou fazer diferente. Não quero receber presente e sim lhe entregar um. Não uma lista, mas um relatório. Um relatório anual da felicidade. 

Sei que é um tenebroso clichê – coisa que abomino desesperadamente – mas a felicidade está mesmo em detalhes pequenos, que não pedem muito. E são estes que quero colocar no meu relatório. O olhar do filho aos pais quando os vê na plateia, no dia da formatura. O sorriso largo e sem igual da amiga querida, no esperado dia do casamento. O beijo de segunda-feira dado por quem te escolhe para dividir a vida. A amizade verdadeira que começou ontem, mas que parece ter existido desde sempre. O resultado daquele exame que tranquiliza ou que exige e desperta ainda mais forças. O encontro com quem fica longe. As flores amarelas surgindo no vasinho que quase foi pro lixo. Tão pequenos? Não, tão grandiosos. 


Resolvido. Vou anotar tudo e entregar à visita. Soube que seu nome é Ano Novo e que costuma bater em todas as portas, oferecendo novidades. Então pode entrar, senhor visitante. Dessa vez vai se surpreender comigo.  Só espero que goste do meu presente e continue me visitando ainda por muito tempo.  Entre e fique à vontade. Mas, antes, limpe bem os pés no tapete. Poeiras passadas podem ficar do lado de fora. 

Cíntia Nascimento

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Picadeiro


Um circo se instalou perto do meu bairro. Vi no outro dia, todo bonito, grande, chique, como aqueles que a gente assiste nos filmes. Devia ser hora de espetáculo, pois uma multidão se organizava para entrar e garantir seu lugar sob aquela lona enorme e colorida. E vendo aquela gente feliz e entusiasmada, senti saudades. De outros tempos, de outros picadeiros.

“Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor!”. Ainda ouço o som abafado que vinha daquele carrinho capenga. Ele percorria as ruas da minha pequena cidade, anunciando um dos acontecimentos mais importantes daquela nossa vida arrastada de interior: a chegada do circo.

Era uma ocasião diferente de tudo, que trazia uma transformação ímpar. As pessoas ficavam mais alegres, leves, curiosas, sem medo de sonhar. Como se uma aura mágica comandasse nossos passos. Os dias assumiam tons de balões coloridos e coisas incríveis aconteciam. Pelo menos era assim que eu percebia, ostentando meus oito, nove anos. O bom era que todo circo sempre se instalava no mesmo lugar, que pra gente já era sagrado. Fincava suas estacas num campinho, ao lado da escola. E só isso já tornava a vida mais atraente.

O certo é que, com a presença daquela fantástica atração nômade, nossas conhecidas brincadeiras do recreio da tarde perdiam a vez para uma observação deliciosa. Do portão lateral, nós alunos assistíamos a uma outra espécie de apresentação. É que nessa hora do dia a trupe circense tocava a vida. Estendia roupa, varria o chão, coisas do cotidiano. E nós, crianças, ficávamos imaginando que aquelas pessoas eram espécies de super-heróis disfarçados. Como se guardassem o melhor, o incrível e o improvável para mais tarde, a hora do espetáculo.

Curioso foi que, numa dessas inebriantes temporadas, eu recebi – até hoje não sei bem o porquê – a benção de poder ir à matinê de domingo com minhas amigas. Sem pais, prima mais velha ou coisa correspondente. Isso sim era um grande acontecimento!

Então lá fui eu, desfilando meu preferido vestido azul de bolinhas brancas com uns enfeitinhos vermelhos, presente da minha avó. Nunca tinha saído assim, com tanta liberdade. Quase desmaiei quando, logo na entrada do circo, dei de cara com a macaca, que se me lembro bem se chamava Efigênia. Eu nunca tinha visto uma macaca assim, tão de perto. Toda linda, estava no colo de uma das artistas, recepcionando o público.

Mas inebriante mesmo foi quando o show começou pra valer. Um desfile de atrações maravilhosas – que hoje sei que eram tão simples, sob aquela cobertura incrementada com remendos. Não tinha charanga (daquelas que tocavam a noite inteira), mas uma bandinha que animava a cena com muito mérito. Tinha um malabarista e suas garrafas coloridas, e um trapezista franzino, que rodopiava no ar enquanto a plateia botava o coração pra fora. Óbvio que a gente curtia com gosto cada segundo daquele universo tão diferente de nossa vidinha de feijão com arroz.

E para completar minha tarde de magia, tive até um momento de estrelato. Fui finalista no concurso de dança orquestrado pelo palhaço barrigudo, que de minuto em minuto parava a música e eliminava as pobrezinhas que julgava não serem pés de valsa. Quando me dei conta, estava entre as duas últimas colocadas.

      – É ela?
        – Não!
        – É ela?
        – É!

        Uma colega de sala, de rua, de tudo, foi a vencedora.  E eu cintilei com o segundo lugar, que me rendeu um esplendoroso prêmio: um ingresso para outra apresentação do circo! Não podia haver recompensa maior. Aliás, podia sim: a fama que me seguiu por meses. Minha performance de vice correu a cidade e depois daquela matinê virei praticamente uma artista. Cheguei até a receber convites para me apresentar nas festinhas que animavam nossos fins de domingos. Uma verdadeira Ginger Rogers mambembe.

Talvez eu vá conferir o espetáculo do grande e novo circo, que é climatizado e vende ingressos pela internet. Quem sabe eu encontre por lá uma garotinha magrinha, com olhos brilhantes e vidrados no picadeiro? Talvez ela esteja lá, só esperando a música tocar para sair dançando. Quem sabe? 


Cíntia Nascimento

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Aleluias








Essas noites de quase primavera torturam meus sentidos. Da porta da varanda, vem o cheiro doce de dama-da-noite, que tão bem perfumou minha infância de mineirices. Não há como não viajar no tempo. Mas o que realmente me leva para estações passadas são os bichinhos de luz. Insetos pequeninos, que na minha terra também se chamam Aleluia e que hoje sei que são cupins. Aqueles que voam incansáveis em torno de qualquer coisa que ilumine suas minúsculas vidinhas. 


Outro dia, saí de casa e me deparei com centenas desses voadores, talvez milhares, num redemoinho alado que enfeitava de asas a entrada do meu prédio. Curioso é que, em cada lâmpada, um grupo apresentava seu show sincronizado. E eu me vi pequena, segurando uma bacia d’água, na sala da casa da minha avó. O certo é que era uma diversão atrair os pobrezinhos insetos para um trágico afogamento. Não por maldade. Mas pra tentar descobrir por qual razão eles mergulhavam sem hesitar naquela piscina improvisada, desistindo da própria existência. 


– Acham que a luz na bacia é mais brilhante! – explicava minha avó, gastando parte de sua psicologia.


Mas se já havia tanta luz no ar, para quê perder a vida numa ilusão? É certo que naquela época eu não podia entender. Agora, até consigo. Quem não conhece uma Aleluia que desistiu de um farol por causa de uma falsa luz brilhante? Eu conheço várias.


A verdade é que a presença daquelas Aleluias, indesejadas por muitos, iluminou minhas noites, por vários anos, em casa, na rua, na pracinha.  E, pelo visto, continua iluminando. De novo digo que esta quase primavera é torturante. Mas de um jeito delicioso: maltrata de saudade ao mesmo tempo em que traz uma vontade imensa de que muitas outras noites ofuscantes – como aquelas – continuem a acontecer. E como que adivinhando meus pensamentos, hoje meu poetinha suspendeu o olhar para o céu e recitou:


– Mãe, a lua está com um sorriso. É porque ela está gostando da noite.


Ela está, sim. E eu também.


Cíntia Nascimento