quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Festa do "Corgo"

 


               Quem tem o privilégio de crescer em uma cidade do interior conhece bem o valor e a beleza das coisas simples, aquelas que nos acompanham pela vida afora. Principalmente se a cidade estiver cravada entre as montanhas de Minas. Felizmente eu tive essa sorte.  Na Cambuí da minha infância, tinha igreja com praça, pipoqueiro na frente do cinema, crianças brincando na rua e festas sem fim (juninas, quermesses, rodeios e bailes no clube por todo e qualquer motivo). E estas, as festas, sem dúvida foram as que me renderam as melhores lembranças. A verdade é que uma delas veio me procurar hoje, agora que já estou tão longe: a festa anual de Córrego do Bom Jesus, uma cidade vizinha, muito, muito pertinho da minha. A tão aguardada Festa do Córrego, ou melhor, a nossa Festa do Corgo.

                A gente esperava o ano inteiro pelo mês de agosto. Todo mundo praticamente parava a vida para poder aproveitar a festa na cidade vizinha. Decretaram até feriado no dia 6! Era um tal de fazer roupa nova, arrumar o cabelo, juntar dinheiro e combinar idas e vindas. Quando eu era criança, a estrada que liga as duas cidades ainda era de terra e a gente ia comendo poeira, espremida dentro dos ônibus lotados. E bota poeira nisso! Eu, que sofria de bronquite, depois da festa passava noites em claro, tentando me recuperar da crise alérgica. Mas valia a pena o sacrifício. Claro que valia!

É que a Festa do Corgo era para mim uma espécie de visão do paraíso. Centenas de vendedores ambulantes vinham de outros tantos territórios trazendo suas tentações, e olha que havia tudo o que a imaginação pudesse alcançar e um pouquinho mais. Roupas, meias, calcinha, panela, sombrinha, flor, peneira, chapéu, boneca de pano, João-teimoso de todas as cores e tamanhos (aquele boneco inflável, tão presente nos anos 1970) e outra infinidade de brinquedos e bugigangas. Eu sempre voltava para casa com pelo menos um ioiô, reloginho de plástico, brincos, pulseirinhas e uns fósforos coloridos, que soltavam faíscas que me iluminam até hoje. Isso sem falar no jogo de argolas, no tiro ao alvo e no cavalinho de mentira para tirar foto. E as comidas então? Consigo sentir até os cheiros. Churrasquinho, pão com carne moída, maçã do amor, churros e aquele refresco colorido. que vinha em um plástico com formato de avião, ursinho e outros às vezes indecifráveis. Sabe-se lá o que havia naquilo! A questão é que ninguém se importava. Eu bebia aquele líquido estranho, quente mesmo, e seguia feliz e saltitante. E, além de tanta coisa boa, acontecia o bingo, no salão embaixo da igreja, onde os adultos se juntavam na expectativa de ganhar um frango assado, um quarto de leitoa, uma rosca doce ou qualquer outro prêmio com gostinho de vitória.

                Só que a Festa do Corgo não encantava apenas a criançada, não. Não havia quem não amasse! É que também era ali que muitas almas gêmeas se encontravam e se uniam para sempre – ou faziam uma espécie de test drive para ver se a coisa iria ou não pra frente. Com certeza são muitos os romances que nasceram regados ao som de sertanejo, com sabor de pipoca doce e broa de milho. Eram nove lindas noites estreladas, que culminavam com um dia inteirinho de festança, quando eu era sugada da realidade e transportada para um mundo mais colorido, com uma gente feliz, dançante, devota do Bom Jesus e com olhos cheios de esperança e fascinação, diante dos fogos prateados que estouravam no meio do jardim.  

                Já faz muito tempo que eu não vou à Festa do Corgo. Muito tempo mesmo. Um amigo me disse que ela agora está diferente, mais profissional, moderna, com shows e barracas organizadas. Não tem mais o jogo de argolas e outras coisinhas. Bem diferente da festa que carrego comigo, mas certamente ainda é incrível. Afinal de contas, algumas coisas não mudam. Como a alegria e a inocência das crianças diante de uma novidade, a fé das pessoas que acompanham emocionadas a procissão e os amores que ainda nascem no vai e vem em volta da praça. Fico feliz em saber que a Festa do Corgo continua produzindo histórias. Espero que ela siga criando lembranças tão boas, bonitas e verdadeiras quanto as minhas. E que, no futuro, alguém também se inspire nela para escrever outro texto e dizer que tudo que um dia nos fez bem nunca deve ser esquecido. 


terça-feira, 1 de julho de 2025

Estreia no Espírito Santo

 Com muita alegria, compartilho minha estreia no cenário literário capixaba!  

Meu poema "O Reflexo" foi selecionado e publicado pela revista "Animalista" da Editora Cleópatra Cartonera (Vila Velha - ES).






quinta-feira, 1 de maio de 2025

A receita milagrosa


Toda vez que alguém da família ficava gripado, minha vó Maria fazia o seu famoso mingau de alho. Uma sopinha salgada de fubá com cebola, muito alho e um ovo, minuciosamente colocado quando ela já estava quase pronta. A receita sempre era servida no prato fundo bege, com drapeado nas bordas, sobre a mesa de madeira gasta da cozinha (aquela com a gaveta onde ficava o fumo de rolo e a palha). E era saboreada sem pressa, acompanhada de pedaços de pão de sal, conversas e desejos de melhoras.

“Levanta até defunto!”, minha vó adorava dizer. Então eu ficava pensando por que ela não fez o mingau para a sua amiga da roça, que havia morrido e pela qual ela vivia chorando pelos cantos. Imaginava a amiga com a colher na boca, se levantando do caixão no meio da igreja na missa de corpo presente – onde a vó fez questão de me levar e de ainda me pegar no colo para que eu pudesse dar o adeus olhando para o rosto da mulher já sem cor. Desses pensamentos literais e estranhos que nos acometem na infância.

Como eu passava a maior parte das horas na casa da vó, tinha a sorte de ganhar um pouco do mingau, sempre que surgia uma vítima resfriada ou prestes a ficar. “Seu tio tá tossindo tanto...” Oba! Lá vem o mingau de alho! Não é que eu desejasse a desgraça alheia, mas aquele caldo fumegante alegrava as minhas tardinhas, principalmente no inverno. É que, além do vírus da gripe, a receita espantava muita coisa: tristezas, medos, desesperanças. E ainda trazia boas lembranças, notícias e muitas risadas. Sem falar do amparo e da força para seguir tocando a vida. Sentimentos genuínos, só encontrados nos gestos simples, feitos com amor.  É verdade que muitas vezes eu fui o alvo do mingau milagroso. Mesmo entre espirros, tosse e nariz fungando, não deixava de curtir a iguaria especialmente preparada para mim, com todas as honras que ela merecia.

Triste é que as tardes de mingau de alho da vó Maria já acabaram faz tempo. Bom é que a tradição tenha permanecido na família. Meu pai ainda se apega à receita quando a gripe aparece ou simplesmente quando tem vontade mesmo. E eu também.

Hoje, com a garganta em brasa e uma tosse que quase está me matando, fiz o meu próprio mingau de alho. Bem caprichadinho, com tudo a que tenho direito. Tudo mesmo. Acrescentei o cheiro maravilhoso do início da noite, a falação dos passarinhos e dos sapos já prontos para dormir, o assovio do vento nas folhas do limoeiro, os passos leves no assoalho e até a chuva fininha, que trazia o ar gelado e fazia a gente fechar as janelas mais cedo, carimbando o desfecho do dia.

“Toma tudo que você vai melhorar rapidinho!”. Sim, vó. Mais uma vez você estava certa. Já me sinto muito melhor.


Cíntia Nascimento