quinta-feira, 1 de maio de 2025

A receita milagrosa


Toda vez que alguém da família ficava gripado, minha vó Maria fazia o seu famoso mingau de alho. Uma sopinha salgada de fubá com cebola, muito alho e um ovo, minuciosamente colocado quando ela já estava quase pronta. A receita sempre era servida no prato fundo bege, com drapeado nas bordas, sobre a mesa de madeira gasta da cozinha (aquela com a gaveta onde ficava o fumo de rolo e a palha). E era saboreada sem pressa, acompanhada de pedaços de pão de sal, conversas e desejos de melhoras.

“Levanta até defunto!”, minha vó adorava dizer. Então eu ficava pensando por que ela não fez o mingau para a sua amiga da roça, que havia morrido e pela qual ela vivia chorando pelos cantos. Imaginava a amiga com a colher na boca, se levantando do caixão no meio da igreja na missa de corpo presente – onde a vó fez questão de me levar e de ainda me pegar no colo para que eu pudesse dar o adeus olhando para o rosto da mulher já sem cor. Desses pensamentos literais e estranhos que nos acometem na infância.

Como eu passava a maior parte das horas na casa da vó, tinha a sorte de ganhar um pouco do mingau, sempre que surgia uma vítima resfriada ou prestes a ficar. “Seu tio tá tossindo tanto...” Oba! Lá vem o mingau de alho! Não é que eu desejasse a desgraça alheia, mas aquele caldo fumegante alegrava as minhas tardinhas, principalmente no inverno. É que, além do vírus da gripe, a receita espantava muita coisa: tristezas, medos, desesperanças. E ainda trazia boas lembranças, notícias e muitas risadas. Sem falar do amparo e da força para seguir tocando a vida. Sentimentos genuínos, só encontrados nos gestos simples, feitos com amor.  É verdade que muitas vezes eu fui o alvo do mingau milagroso. Mesmo entre espirros, tosse e nariz fungando, não deixava de curtir a iguaria especialmente preparada para mim, com todas as honras que ela merecia.

Triste é que as tardes de mingau de alho da vó Maria já acabaram faz tempo. Bom é que a tradição tenha permanecido na família. Meu pai ainda se apega à receita quando a gripe aparece ou simplesmente quando tem vontade mesmo. E eu também.

Hoje, com a garganta em brasa e uma tosse que quase está me matando, fiz o meu próprio mingau de alho. Bem caprichadinho, com tudo a que tenho direito. Tudo mesmo. Acrescentei o cheiro maravilhoso do início da noite, a falação dos passarinhos e dos sapos já prontos para dormir, o assovio do vento nas folhas do limoeiro, os passos leves no assoalho e até a chuva fininha, que trazia o ar gelado e fazia a gente fechar as janelas mais cedo, carimbando o desfecho do dia.

“Toma tudo que você vai melhorar rapidinho!”. Sim, vó. Mais uma vez você estava certa. Já me sinto muito melhor.


Cíntia Nascimento