sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

A mulher que vendia livros



            – Filha, me ajuda aqui! – foi o que ela disse, numa das tardes em que eu fazia o trajeto de volta ao metrô.

            – Segura nessa ponta, que eu puxo na outra – ordenou sem rodeios.

            E ali já estava eu, abaixada, arrastando com aquela desconhecida um imenso retângulo de lona, cheio de livros em cima. E isso em plena calçada da praia de Botafogo! Uns dois metros para a esquerda, uma ajeitadinha pra direita, e pronto:

            – Já tá bom, obrigada! É que eu estou operada – justificou, segurando a barriga.

            Depois daquela interessante interrupção, retomei o meu caminho. Só que dessa vez me acompanhou a imagem daquela senhorinha, que toda tarde estava ali vendendo livros de diferentes gêneros, tamanhos e idades. Muito magrinha, de óculos, cabelo branco, sentada no banquinho de plástico. E sempre lendo. A verdade é que, por quase três anos, sua figura já chamava a minha atenção, no cenário das automáticas idas e vindas do trabalho. Mas, daquele dia em diante, assumiu uma espécie de protagonismo.

Como resultado, comecei a reparar mais naquela frágil criatura.  E confirmei que ela ajudava a compor a carioquice do bairro, famoso por seus belos casarões e por suas ruas com nomes de barões e de marqueses, que deixam vivos os ciclos que marcaram nossa história: do ouro, do café, do leite, do café com leite.

O certo é que todo dia, da hora do almoço até a noite, lá estava ela, rodeada pelo corre-corre de gente de todo tipo. Ao seu lado, na calçada, conviviam pipoqueiros, camelôs, mendigos, crianças de uniformes, amigas com sorvetes e moradores com cachorros, desviando dos buracos, muitos buracos – tantos, que certa vez um até me derrubou de cara no chão, esfolando a minha manhã. Ainda assim, para compensar o tumulto e os tropeços, estava insistentemente ali, instalado, aquele clima de novela das nove, com Tom Jobim ao fundo, se sobrepondo às buzinas e às sirenes. Um misto de caos, fluidez e beleza. Dessas coisas que só o Rio tem. Para completar, em frente à emblemática vendedora de livros, estavam o mar, os belos barcos, o Morro da Urca, o Pão de Açúcar, o bondinho. E, como se tanta boniteza já não bastasse, atrás dela ficava o Cristo, observando.

Chovia, fazia sol, uma ventania danada e a sentinela literária lá, no seu posto. Ora lendo, ora conversando com vizinhos comerciantes, ora acolhendo clientes. Apenas falhava nas tempestades, quando a água jorrava dos bueiros e transformava a calçada em correnteza. Aí não tinha amor às letras que resistisse.

Botafogo não está mais no meu percurso há tempos, mas a mulher que vendia livros, sim. Qual era o nome dela, onde morava e de onde brotavam seus tesouros? Não descobri. Tampouco soube o que ela tanto lia, compenetrada, enquanto as belezas e os dissabores do bairro se desenrolavam ao seu redor. Com certeza eu deveria ter investigado. E espero sinceramente que ela continue lá, ao lado dos personagens que bailavam naquela cena. Quem sabe?

O que acontece é que agora, quando penso na força e na delicadeza que a presença da vendedora de livros emprestava àquelas tardes, concluo que o mistério não era o elemento principal da sua trama. O que realmente transbordava dos seus livros era outra coisa: poesia.  


Cíntia Nascimento