–
Filha, me ajuda aqui! – foi o que ela disse, numa das tardes em que eu fazia o
trajeto de volta ao metrô.
–
Segura nessa ponta, que eu puxo na outra – ordenou sem rodeios.
E
ali já estava eu, abaixada, arrastando com aquela desconhecida um imenso
retângulo de lona, cheio de livros em cima. E isso em plena calçada da praia de
Botafogo! Uns dois metros para a esquerda, uma ajeitadinha pra direita, e
pronto:
–
Já tá bom, obrigada! É que eu estou operada – justificou, segurando a barriga.
Depois
daquela interessante interrupção, retomei o meu caminho. Só que dessa vez me
acompanhou a imagem daquela senhorinha, que toda tarde estava ali vendendo livros
de diferentes gêneros, tamanhos e idades. Muito magrinha, de óculos, cabelo
branco, sentada no banquinho de plástico. E sempre lendo. A verdade é que, por
quase três anos, sua figura já chamava a minha atenção, no cenário das automáticas
idas e vindas do trabalho. Mas, daquele dia em diante, assumiu uma espécie de
protagonismo.
Como resultado, comecei a reparar mais naquela
frágil criatura. E confirmei que ela ajudava
a compor a carioquice do bairro, famoso por seus belos casarões e por suas ruas
com nomes de barões e de marqueses, que deixam vivos os ciclos que marcaram nossa
história: do ouro, do café, do leite, do café com leite.
O certo é que todo dia, da hora do almoço até a
noite, lá estava ela, rodeada pelo corre-corre de gente de todo tipo. Ao seu lado,
na calçada, conviviam pipoqueiros, camelôs, mendigos, crianças de uniformes, amigas
com sorvetes e moradores com cachorros, desviando dos buracos, muitos buracos –
tantos, que certa vez um até me derrubou de cara no chão, esfolando a minha manhã.
Ainda assim, para compensar o tumulto e os tropeços, estava insistentemente ali,
instalado, aquele clima de novela das nove, com Tom Jobim ao fundo, se
sobrepondo às buzinas e às sirenes. Um misto de caos, fluidez e beleza. Dessas
coisas que só o Rio tem. Para completar, em frente à emblemática vendedora de
livros, estavam o mar, os belos barcos, o Morro da Urca, o Pão de Açúcar, o
bondinho. E, como se tanta boniteza já não bastasse, atrás dela ficava o Cristo,
observando.
Chovia, fazia sol, uma ventania danada e a sentinela
literária lá, no seu posto. Ora lendo, ora conversando com vizinhos comerciantes,
ora acolhendo clientes. Apenas falhava nas tempestades, quando a água jorrava
dos bueiros e transformava a calçada em correnteza. Aí não tinha amor às letras
que resistisse.
Botafogo não está mais no meu percurso há tempos,
mas a mulher que vendia livros, sim. Qual era o nome dela, onde morava e de
onde brotavam seus tesouros? Não descobri. Tampouco soube o que ela tanto lia, compenetrada,
enquanto as belezas e os dissabores do bairro se desenrolavam ao seu redor. Com
certeza eu deveria ter investigado. E espero sinceramente que ela continue lá,
ao lado dos personagens que bailavam naquela cena. Quem sabe?
O que acontece é que agora, quando penso na força e
na delicadeza que a presença da vendedora de livros emprestava àquelas tardes, concluo
que o mistério não era o elemento principal da sua trama. O que realmente transbordava
dos seus livros era outra coisa: poesia.
Cíntia Nascimento