terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Parceria artística



A amiga Christina Brazil, artista visual, e eu unimos nossas artes neste vídeo para mandar uma mensagem especial aos nossos amigos. 

Desejamos que ele também desperte em você os melhores sentimentos para o ano que vem chegando e para todos os outros também!


Texto adaptado de "O visitante" ("Coisas e Crônicas" - Cíntia Nascimento).
Para ler o texto completo: http://coisasecronicas.blogspot.com/2013/12/o-visitante.html

Para conhecer mais sobre o trabalho de Christina Brazil, acesse:
https://www.youtube.com/c/ChrisBrazilvidaearte
https://www.facebook.com/chrisbrazilvidaearte/
https://www.instagram.com/chrisbrazilvidaearte/?hl=pt-br








 

sábado, 19 de dezembro de 2020

O ciclista iluminado*


Papai Noel desembarcou de bicicleta bem no meio da praça, em frente à matriz. E não era uma miragem. Lá estava mesmo ele, pedalando em círculos, como quem procura por alguma coisa que ainda não sabe bem o que é. Um Papai Noel de verdade, com roupa supervermelha, botas pretas e saco de presentes nas costas. Mas de onde ele tinha vindo? Era o que todas as crianças da cidade, assim como eu, queriam saber naquela noite de dezembro.

Passamos todo o tempo do nosso passeio dominical olhando para o alto, onde o inesperado visitante circulava sobre sua ciclovia de metal iluminada. Já tonta de tanto rolar os olhos e procurar uma resposta para aquela aparição, a criançada não se continha:

– Como ele veio parar aqui?

– Só pode ter vindo direto do Polo Norte.

– Mas por que chegou tão cedo, antes do Natal?

As respostas para tantas perguntas eram uma incógnita. Mas todos concordavam em uma questão: aquele Papai Noel havia tornado a noite mais que especial. Na verdade, inesquecível. Nossas habituais brincadeiras cederam lugar para uma vigília hipnotizada. Ninguém queria saber de mais nada. Voltamos para a casa levando o bom velhinho para os nossos sonhos. Teve gente que chegou a fazer uma lista de desejos para entregar a ele no dia seguinte. É que combinamos de nos encontrar, no mesmo local, para ver se Papai Noel tinha descido e, quem sabe, até conversaria com a gente.

De manhã, na escola, ninguém se aguentava. A única ideia era correr para a praça e abraçar aquele visitante tão ilustre. Mal o sinal tocou, saímos em disparada morro acima, parando apenas por uns segundinhos para recuperar o fôlego. Só que fomos recebidos pela decepção.  A praça não era a mesma da noite anterior e nada do ciclista natalino.

– Moço, cadê o Papai Noel que estava aqui ontem? – perguntamos para o Joãozinho da dona Zefa, que aparava a grama do jardim.

– Ué?! Está no mesmo lugar. Olha ele ali! – respondeu, apontando para o centro da praça.

Não, não era possível. Ali só se via uma estrutura de ferro, onde no alto estava presa uma pseudobicicleta meio encardida. E, sobre ela, um ser estático, de plástico, vestido de vermelho. Tinha barba branca, é verdade, mas estava longe de ser aquele que tanto nos impressionou na noite anterior.

– Mas esse não é ele! Pra onde ele foi?

Sem esconder o descontentamento – e meio que segurando o choro –, deixamos a praça tentando resolver aquele mistério. Não se falava em outra coisa.

– Será que fizemos algo que Papai Noel não gostou? Será que nunca mais vai voltar?

– Acho que é verdade que ele não existe.

Quanta tristeza naquelas vidinhas interioranas... Até que alguém colocou a cabeça para funcionar e soltou essa:

– E se a gente voltar à noite? Quem sabe ele também volta?

Combinado. Marcamos para as oito, no mesmo lugar, com a mesma esperança. E quem chegou primeiro já estava de boca aberta quando surgiram os retardatários.

– Ele voltou! Ele voltou! – festejamos em coro.

E não é que tinha mesmo voltado? Papai Noel estava de novo lá, lindo, pedalando e iluminando a praça com suas lâmpadas brilhantes. A felicidade das crianças contagiou até quem não acreditava em milagres, muito menos naqueles feitos pelo lendário personagem. Todo o fascínio da noite passada novamente tomou conta da praça, da rua, da cidade.   

E foi assim durante todo o resto do mês. De dia, a gente até evitava passar pela praça. Para ter que ver aquela geringonça de ferro sem graça? Deus me livre! Todos nós queríamos era bater ponto à noite para cumprimentar aquele ser que havia caído do céu.

Foi pouco depois do Natal que Papai Noel nos deixou sem dizer adeus ou até breve. Não voltou no próximo ano, nem no seguinte. Com certeza foi pedalar em outras ciclovias e encantar outras infâncias como tão bem fez com a minha. Tão bem que a magia de suas pedaladas desde então vem iluminando todos os meus natais. 


Cíntia Nascimento

*Este conto foi selecionado e publicado na antologia "A Magia do Natal", promovida pela WebTV, em dezembro de 2020 (https://www.redewtv.com/2020/12/antologia-magia-do-natal-2x03-o.html).


segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

A venda do seu Moisés

 

                

             Na venda do seu Moisés tinha de tudo. Pilha, maria-mole, banana, sabão em pó, paçoquinha, pasta de dente, guaraná, água sanitária, chocolate, papel higiênico, doce de leite, cachaça, pipoca, groselha, balas de todas as cores e sabonete. Também tinha pó de café, agulha, açúcar, bombocado, palha de aço, rocambole, detergente, suspiro, gilete e farinha de milho. E no meio de tanta coisa, tinha ainda conversa de compadres e crianças felizes, frequesinhas com a sorte de estar crescendo no interior de Minas. E o melhor é que, entre as sortudas, estava eu, que morava na mesma rua, na mesma calçada.

            Toda tarde era preciso bater o ponto na venda do seu Moisés para adoçar a existência. Já o cardápio era variado conforme o dia da semana, a disposição ou o humor. Eu gostava da bala redonda e dura, que carregava uma aura perigosa, aterrorizando a nossa vida. O certo é que todo mundo sabia de um infeliz, filho não sei de quem, que se engasgou com a danada e precisou correr para o hospital. As roxas, de uva, eram as mais ameaçadoras (sabe-se lá o porquê). Também adorava aquelas balas que vinham em correntinha, uma emendada na outra, embrulhadas em papel com carinhas de bichos. E amava a bananada, do copinho com colherzinha de madeira. Delícias!

            Se acabava o sal, “corre lá na venda do seu Moisés”.  Se era o vinagre que faltava para a salada, “pede pro seu Moisés vender só um copo”. E a gente levava de casa o tal copo para ser enchido com o vinagre ou qualquer outro líquido que porventura estivesse sendo requisitado.

              Do lado de dentro do balcão, ficava ele, o seu Moisés. Educado, sereno, com a maior paciência para atender clientela tão animada. Sua esposa, dona Ana, também muitas vezes estava por perto emprestando sua doçura e dando uma mãozinha. E havia ainda o seu Jacinto - irmão do seu Moisés –, figura ímpar, que exibia uma altivez e uma elegância primorosas, o que tornava o local ainda mais cativante. Uma vez seu Jacinto pediu para eu fazer uma conta de multiplicar. Acertei. Aí ele começou a incrementar os números e a coisa foi ficando cada vez mais desafiadora. Em outro dia, pediu que eu colocasse a linha preta na agulha para ele (naquela época eu enxergava!). E ficou impressionado quando dei o nozinho no final, unindo as duas pontas. “Que menina esperta!”. Lógico que saí saltitando, crente que era uma heroína, e nunca mais me esqueci da proeza.  

           Também nunca me esqueci do cheiro da venda, que trouxe aroma e tanto tempero às nossas infâncias. E o legal é que pude ver de perto seus bastidores, já que era – e ainda sou, felizmente – amiga das netas do seu Moisés: Patrícia, Maria Luiza e Elaine. Portanto, a amizade me dava passe livre para frequentar o sobrado, sede da venda. Ele ficava ao pé do morro e tinha um quintal enorme, com balanço e tudo, perfeito para as nossas tantas brincadeiras. O melhor da história é que sempre fui recebida pela família de forma muito carinhosa e invariavelmente deixava a casa me sentindo respeitada, importante.  

               Queria que todo mundo tivesse uma venda do seu Moisés na memória e tudo o que vem junto com ela. Além do gosto de nossas guloseimas prediletas, as lembranças da venda trazem também a fragrância da terra que levantava da nossa rua, quando vez ou outra passava um carro.  Resgatam o murmurinho da criançada jogando queimada ou peteca, pulando amarelinha e se estabacando no chão para aprender a andar de bicicleta. O barulho dos carrinhos de rolimã, acordando os vizinhos mais cedo. As manilhas de concreto, que por algum tempo foram nossas espaçonaves e nos levaram para galáxias distantes.  Evocam os votos de bom-dia da tia Terezinha, sempre bem-maquiada e esperando o melhor da vida. A serenidade da dona Natália, que cultivava rosas no jardim. O som de bateria que vinha da casa da esquina.

             Tanta coisa bonita morava naquele pedacinho de rua, onde cabia o nosso mundo. Pena que agora a venda não existe mais. Mentira! Existe, sim. Está guardada aqui dentro, com todos os bons sentimentos que ajudou a delinear e a consolidar. É que na venda do seu Moisés tinha mesmo de tudo. Inclusive o amor.

Cíntia Nascimento

 

Foto: Seu Moisés, em frente à venda, no início dos anos 1970, em Cambuí - MG (Arquivo de família)