quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Era uma vez



Uma vez livro,
tantas vezes tanto,
tantas vezes livre.
                             
Cíntia Nascimento
                                     

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Agora*


 

Ontem era estranho,

quase nada, invisível.

Agora é vívido,

permanente, possível.

 

Ontem era distante,

insólito, cegueira.

Agora é evidente,

incêndio, fogueira.

 

Ontem era um sopro,

névoa rasa, sombria.

Agora é titânico,

assolador, ventania.

 

Ontem era devaneio,

pergunta, ausência.

Agora é certeza,

resposta, essência.

 

Ontem era tão pouco,

vazio, retirante.

Agora é você,

suficiente, constante.


Cíntia Nascimento


*Este poema foi um dos vencedores do "Prêmio Poesia Agora Outono 2018", promovido pela Editora Trevo, de São Paulo - SP.



terça-feira, 20 de outubro de 2020

Mundos da Lua

 


Lua luz.

Lustre, lampião, lamparina.

Límpida, acolhe, acalenta, ilumina.

  

Lua linda.

Larga, lisa, colante.

Leve, envolve, bailante.

 

Lua longe.

Lança lendas, lembranças, luxúrias.

Molha os olhos, leva colheitas, lamúrias.

 

Lua louca.

Mulher liberta, livre, fervilhante.

Ludibria, aliena, fulminante.

 

Lua luz, linda, longe, louca.

Lampejo andante.

Leva as dores, lava a alma,

faz da vida um instante.  

 

Cíntia Nascimento

 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Uma noite


        Apenas uma noite. Foi o que viveu a flor branca que nasceu da minha plantinha adormecida há mais de nove anos. Mas uma noite plena, inteira, capaz de deixar uma lembrança tão forte – e ao mesmo tempo tão sutil – como o seu perfume. E foi essa curiosa brevidade que me fez pensar em todos os sentimentos que duram alguns minutos, ou até segundos, mas que nos acompanham por toda a vida.

        Como a primeira vez que vi as bochechas rosadas do meu filho e ouvi os primeiros sons que saíram da sua boca. O cheiro do mar quando comprovei que ele realmente existia. A música que nascia da boneca de pano que minha mãe me mandou de presente pelo correio. O olhar da minha avó me pedindo para guardar a foto de quando ela era moça. O desajeitado e breve cavalgar na roça do meu tio. O êxtase em frente ao berço onde dormia meu irmão recém-chegado da maternidade. O gosto do maracujá comprado pelo meu pai do vendedor de frutas que passava na nossa rua. O miado da gatinha que meu marido me entregou no aniversário. Tudo verdadeiramente simples e único.

      Só que a gente se cobra muito. Tem sempre que estar fazendo algo importante, provando algo para alguém. Uma bobagem da qual não conseguimos nos desvencilhar. Não seria tão mais fácil se pensássemos em um dia de cada vez? Uma coisa é certa: todos nós carregamos momentos cujas ordens, neste caso, alteram o resultado. Pois é a soma destes que nos leva à certeza de que viver é mesmo algo extraordinário. Todos eles, quando unidos, formam uma rede de trama forte e resistente, capaz de nos segurar por maiores que sejam o impacto e a altura da queda.

       Então acho que o melhor é guardar com cuidado cada momento genuíno, um a um, para que sempre possamos recorrer à sua força. Pois a fugacidade é algo que ronda toda a nossa vida que, por mais veloz que se apresente, precisa ser idolatrada. Como algo que pudesse ser admirado apenas por uma exclusiva e singular oportunidade, sem volta. Como se, como a flor, durasse apenas uma noite. 

Cíntia Nascimento