terça-feira, 29 de dezembro de 2020
Parceria artística
sábado, 19 de dezembro de 2020
O ciclista iluminado*
Papai
Noel desembarcou de bicicleta bem no meio da praça, em frente à matriz. E não
era uma miragem. Lá estava mesmo ele, pedalando em círculos, como quem procura
por alguma coisa que ainda não sabe bem o que é. Um Papai Noel de verdade, com
roupa supervermelha, botas pretas e saco de presentes nas costas. Mas de onde
ele tinha vindo? Era o que todas as crianças da cidade, assim como eu, queriam
saber naquela noite de dezembro.
Passamos
todo o tempo do nosso passeio dominical olhando para o alto, onde o inesperado
visitante circulava sobre sua ciclovia de metal iluminada. Já tonta de tanto
rolar os olhos e procurar uma resposta para aquela aparição, a criançada não se
continha:
– Como
ele veio parar aqui?
– Só pode
ter vindo direto do Polo Norte.
– Mas por
que chegou tão cedo, antes do Natal?
As
respostas para tantas perguntas eram uma incógnita. Mas todos concordavam em
uma questão: aquele Papai Noel havia tornado a noite mais que especial. Na
verdade, inesquecível. Nossas habituais brincadeiras cederam lugar para uma
vigília hipnotizada. Ninguém queria saber de mais nada. Voltamos para a casa
levando o bom velhinho para os nossos sonhos. Teve gente que chegou a fazer uma
lista de desejos para entregar a ele no dia seguinte. É que combinamos de nos
encontrar, no mesmo local, para ver se Papai Noel tinha descido e, quem sabe,
até conversaria com a gente.
De manhã,
na escola, ninguém se aguentava. A única ideia era correr para a praça e
abraçar aquele visitante tão ilustre. Mal o sinal tocou, saímos em disparada
morro acima, parando apenas por uns segundinhos para recuperar o fôlego. Só que
fomos recebidos pela decepção. A praça não era a mesma da noite anterior
e nada do ciclista natalino.
– Moço,
cadê o Papai Noel que estava aqui ontem? – perguntamos para o Joãozinho da dona
Zefa, que aparava a grama do jardim.
– Ué?!
Está no mesmo lugar. Olha ele ali! – respondeu, apontando para o centro da
praça.
Não, não
era possível. Ali só se via uma estrutura de ferro, onde no alto estava presa
uma pseudobicicleta meio encardida. E, sobre ela, um ser estático, de plástico,
vestido de vermelho. Tinha barba branca, é verdade, mas estava longe de ser
aquele que tanto nos impressionou na noite anterior.
– Mas
esse não é ele! Pra onde ele foi?
Sem
esconder o descontentamento – e meio que segurando o choro –, deixamos a praça
tentando resolver aquele mistério. Não se falava em outra coisa.
– Será
que fizemos algo que Papai Noel não gostou? Será que nunca mais vai voltar?
– Acho
que é verdade que ele não existe.
Quanta
tristeza naquelas vidinhas interioranas... Até que alguém colocou a cabeça para
funcionar e soltou essa:
– E se a
gente voltar à noite? Quem sabe ele também volta?
Combinado.
Marcamos para as oito, no mesmo lugar, com a mesma esperança. E quem chegou
primeiro já estava de boca aberta quando surgiram os retardatários.
– Ele
voltou! Ele voltou! – festejamos em coro.
E não é que tinha mesmo voltado?
Papai Noel estava de novo lá, lindo, pedalando e iluminando a praça com suas
lâmpadas brilhantes. A felicidade das crianças contagiou até quem não
acreditava em milagres, muito menos naqueles feitos pelo lendário personagem.
Todo o fascínio da noite passada novamente tomou conta da praça, da rua, da
cidade.
E foi assim durante todo o resto
do mês. De dia, a gente até evitava passar pela praça. Para ter que ver aquela
geringonça de ferro sem graça? Deus me livre! Todos nós queríamos era bater
ponto à noite para cumprimentar aquele ser que havia caído do céu.
Foi pouco depois do Natal que Papai Noel nos deixou sem dizer adeus ou até breve. Não voltou no próximo ano, nem no seguinte. Com certeza foi pedalar em outras ciclovias e encantar outras infâncias como tão bem fez com a minha. Tão bem que a magia de suas pedaladas desde então vem iluminando todos os meus natais.
Cíntia Nascimento
*Este conto foi selecionado e publicado na antologia "A Magia do Natal", promovida pela WebTV, em dezembro de 2020 (https://www.redewtv.com/2020/12/antologia-magia-do-natal-2x03-o.html).
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
A venda do seu Moisés
Na
venda do seu Moisés tinha de tudo. Pilha, maria-mole, banana, sabão em pó,
paçoquinha, pasta de dente, guaraná, água sanitária, chocolate, papel
higiênico, doce de leite, cachaça, pipoca, groselha, balas de todas as cores e
sabonete. Também tinha pó de café, agulha, açúcar, bombocado, palha de aço,
rocambole, detergente, suspiro, gilete e farinha de milho. E no meio de tanta
coisa, tinha ainda conversa de compadres e crianças felizes, frequesinhas com a
sorte de estar crescendo no interior de Minas. E o melhor é que, entre as
sortudas, estava eu, que morava na mesma rua, na mesma calçada.
Toda tarde era preciso bater o
ponto na venda do seu Moisés para adoçar a existência. Já o cardápio era
variado conforme o dia da semana, a disposição ou o humor. Eu gostava da bala
redonda e dura, que carregava uma aura perigosa, aterrorizando a nossa vida. O
certo é que todo mundo sabia de um infeliz, filho não sei de quem, que se
engasgou com a danada e precisou correr para o hospital. As roxas, de uva, eram
as mais ameaçadoras (sabe-se lá o porquê). Também adorava aquelas balas que
vinham em correntinha, uma emendada na outra, embrulhadas em papel com carinhas
de bichos. E amava a bananada, do copinho com colherzinha de madeira. Delícias!
Se acabava o sal, “corre lá na
venda do seu Moisés”. Se era o vinagre que faltava para a salada,
“pede pro seu Moisés vender só um copo”. E a gente levava de casa o tal copo
para ser enchido com o vinagre ou qualquer outro líquido que porventura
estivesse sendo requisitado.
Do lado de dentro do
balcão, ficava ele, o seu Moisés. Educado, sereno, com a maior paciência para
atender clientela tão animada. Sua esposa, dona Ana, também muitas vezes estava
por perto emprestando sua doçura e dando uma mãozinha. E havia ainda o seu
Jacinto - irmão do seu Moisés –, figura ímpar, que exibia uma altivez e uma
elegância primorosas, o que tornava o local ainda mais cativante. Uma vez seu
Jacinto pediu para eu fazer uma conta de multiplicar. Acertei. Aí ele começou a
incrementar os números e a coisa foi ficando cada vez mais desafiadora. Em
outro dia, pediu que eu colocasse a linha preta na agulha para ele (naquela
época eu enxergava!). E ficou impressionado quando dei o nozinho no final,
unindo as duas pontas. “Que menina esperta!”. Lógico que saí saltitando, crente
que era uma heroína, e nunca mais me esqueci da proeza.
Também nunca me esqueci do cheiro da
venda, que trouxe aroma e tanto tempero às nossas infâncias. E o legal é que
pude ver de perto seus bastidores, já que era – e ainda sou, felizmente – amiga
das netas do seu Moisés: Patrícia, Maria Luiza e Elaine. Portanto, a amizade me
dava passe livre para frequentar o sobrado, sede da venda. Ele ficava ao pé do
morro e tinha um quintal enorme, com balanço e tudo, perfeito para as nossas
tantas brincadeiras. O melhor da história é que sempre fui recebida pela
família de forma muito carinhosa e invariavelmente deixava a casa me sentindo
respeitada, importante.
Queria que todo mundo
tivesse uma venda do seu Moisés na memória e tudo o que vem junto com ela. Além
do gosto de nossas guloseimas prediletas, as lembranças da venda trazem também
a fragrância da terra que levantava da nossa rua, quando vez ou outra passava
um carro. Resgatam o murmurinho da criançada jogando queimada ou
peteca, pulando amarelinha e se estabacando no chão para aprender a andar de
bicicleta. O barulho dos carrinhos de rolimã, acordando os vizinhos mais cedo.
As manilhas de concreto, que por algum tempo foram nossas espaçonaves e nos
levaram para galáxias distantes. Evocam os votos de bom-dia da tia
Terezinha, sempre bem-maquiada e esperando o melhor da vida. A serenidade da
dona Natália, que cultivava rosas no jardim. O som de bateria que vinha da casa
da esquina.
Tanta coisa bonita morava
naquele pedacinho de rua, onde cabia o nosso mundo. Pena que agora a venda não
existe mais. Mentira! Existe, sim. Está guardada aqui dentro, com todos os bons
sentimentos que ajudou a delinear e a consolidar. É que na venda do seu Moisés
tinha mesmo de tudo. Inclusive o amor.
Cíntia
Nascimento
Foto: Seu
Moisés, em frente à venda, no início dos anos 1970, em Cambuí -
MG (Arquivo de família)
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
Agora*
Ontem era estranho,
quase nada, invisível.
Agora é vívido,
Ontem era distante,
insólito, cegueira.
Agora é evidente,
incêndio, fogueira.
Ontem era um sopro,
névoa rasa, sombria.
Agora é titânico,
assolador, ventania.
Ontem era devaneio,
pergunta, ausência.
Agora é certeza,
resposta, essência.
Ontem era tão pouco,
vazio, retirante.
Agora é você,
suficiente, constante.
Cíntia Nascimento
*Este poema foi um dos vencedores do "Prêmio Poesia Agora Outono 2018", promovido pela Editora Trevo, de São Paulo - SP.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Mundos da Lua
Lua luz.
Lustre, lampião, lamparina.
Límpida, acolhe, acalenta, ilumina.
Lua linda.
Larga, lisa, colante.
Leve, envolve, bailante.
Lua longe.
Lança lendas, lembranças, luxúrias.
Molha os olhos, leva colheitas, lamúrias.
Lua louca.
Mulher liberta, livre, fervilhante.
Ludibria, aliena, fulminante.
Lua luz, linda, longe, louca.
Lampejo andante.
Leva as dores, lava a alma,
faz da vida um instante.
Cíntia Nascimento
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
Uma noite
Apenas uma noite. Foi o que viveu a flor branca que nasceu da minha plantinha adormecida há mais de nove anos. Mas uma noite plena, inteira, capaz de deixar uma lembrança tão forte – e ao mesmo tempo tão sutil – como o seu perfume. E foi essa curiosa brevidade que me fez pensar em todos os sentimentos que duram alguns minutos, ou até segundos, mas que nos acompanham por toda a vida.
Como a primeira vez que vi as bochechas rosadas do meu filho e ouvi os primeiros sons que saíram da sua boca. O cheiro do mar quando comprovei que ele realmente existia. A música que nascia da boneca de pano que minha mãe me mandou de presente pelo correio. O olhar da minha avó me pedindo para guardar a foto de quando ela era moça. O desajeitado e breve cavalgar na roça do meu tio. O êxtase em frente ao berço onde dormia meu irmão recém-chegado da maternidade. O gosto do maracujá comprado pelo meu pai do vendedor de frutas que passava na nossa rua. O miado da gatinha que meu marido me entregou no aniversário. Tudo verdadeiramente simples e único.
Só que a gente se cobra muito. Tem sempre que estar fazendo algo importante, provando algo para alguém. Uma bobagem da qual não conseguimos nos desvencilhar. Não seria tão mais fácil se pensássemos em um dia de cada vez? Uma coisa é certa: todos nós carregamos momentos cujas ordens, neste caso, alteram o resultado. Pois é a soma destes que nos leva à certeza de que viver é mesmo algo extraordinário. Todos eles, quando unidos, formam uma rede de trama forte e resistente, capaz de nos segurar por maiores que sejam o impacto e a altura da queda.
Então acho que o melhor é guardar com cuidado cada momento genuíno, um a um, para que sempre possamos recorrer à sua força. Pois a fugacidade é algo que ronda toda a nossa vida que, por mais veloz que se apresente, precisa ser idolatrada. Como algo que pudesse ser admirado apenas por uma exclusiva e singular oportunidade, sem volta. Como se, como a flor, durasse apenas uma noite.
Cíntia Nascimento