Que caminhos somos capazes de percorrer para proteger quem amamos? E
quanto aos segredos? Podemos guardá-los mesmo que sejam aterrorizantes? Dúvidas
como estas me remetem a uma história, meio acontecida, meio inventada, meio
imaginada, ouvida há muito tempo.
Alguém me contou que era quase inverno de 1958 quando aquela família
desembarcou na cidade. Pai, mãe e bebê saíram do trem apressados. O destino era
o casarão da Rua Onze, lacrado há anos. E em uma terra de tão poucas novidades,
aquilo foi o suficiente para encabeçar a pauta da semana. Logo parte das fichas
dos recém-chegados estava levantada. O pai, alto e elegante com seu chapéu de
feltro cinza-azulado, era Miguel Castilho, um vendedor de livros. A pálida mãe,
Estela, magra, não tão alta, trazia no rosto uma beleza suspeita, reforçada por
olhos de um castanho vazio. E o bebê, enrolado em panos brancos com bolinhas
amarelas, era um menino de poucos meses, como deduziram os que se achavam mais
espertos. De fato, o que todos queriam mesmo saber era a razão daquele trio ter
se mudado para um lugar no meio do nada.
– Ouvi dizer que viviam em Serra Pequena. Parece que a senhora sofre
dos nervos e precisa de um lugar para descansar – anunciou o jornaleiro.
Então era isso. E se o que o
casal buscava era sossego, estava no lugar certo. Passado o clímax da chegada, a vida seguiu um
curso normal, desviado apenas pela observação minuciosa da vizinhança. Se Estela ia à praça com o carrinho de bebê,
era logo abordada:
– Que nenenzinho mais lindo! Posso ver a carinha dele?
– Melhor não. Tenho medo que se resfrie – era a resposta ouvida
repetidas vezes, antes de a mulher tomar o rumo de casa.
A verdade é que quase um mês se passou e ninguém viu a face do tal
menino. Claro que começaram as especulações.
– Nasceu defeituoso, o coitadinho. Ouvi dizer que tem dois buracos no
lugar do nariz.
– Que nada! Deve ser é muito feio mesmo!
No gelo das noites, podia-se ouvir o chocalho do pequenino, que àquela
altura já tinha o nome conhecido: Luisinho. Também se escutavam o acalanto da
mãe e, vez ou outra, um choro bem fininho. Não demorou e o pai precisou se
ausentar para oferecer seus livros aos arredores. Estela trancou-se com o bebê
por uma semana, até que Pedro, o padre, sem esconder a bisbilhotice, arriscou
uma visita.
– Como tem passado a senhora?
A mulher, sem alternativas, convidou o vigário para entrar e perguntou
se aceitaria um chá:
– De erva-doce ou camomila, por favor.
Enquanto Estela esquentava a água na cozinha, o padre investigava a
sala. A mobília gasta, mas ainda pomposa, já era sua conhecida, pois figurava
como patrimônio do casarão. Assim como as cortinas amareladas, incapazes de
bloquear a passagem do tempo. Tanto olhou que avistou, na porta do quarto, o
que procurava. Com passos almofadados, caminhou até o carrinho de bebê e
encontrou a criança mais uma vez coberta, quietinha, num sono profundo. Enfim
veria o rosto daquele ser que tanto intrigava o seu rebanho. Levantou de leve o
paninho de flanela que cobria a cabeça e o que se passou foi um espanto sem tamanho.
Vestido com um macacãozinho de tricô listrado de verde e branco, o bebê não se
movia, não respirava. E nem poderia. Pois ele era um boneco. Um boneco daqueles
de plástico, com olhos azuis pintados. O certo é que a surpresa deixou o pároco
sem palavras e sem vontade de tomar chá, qualquer que fosse o sabor. Inventou
um imprevisto e deixou o casarão.
Quando retornou, naquela noite, Miguel soube da visita. Beijou Estela
e saiu. É que já conhecia o desfecho daquela narrativa e quis se antecipar para
proteger a mulher e – por que não dizer? – o filho.
Nem bem chegou à igreja, Miguel se deparou com padre Pedro, que de
pronto interrompeu sua leitura, certo de que ouviria uma trama mais
interessante.
– Soube que o senhor esteve lá em casa. Espero que Estela o tenha
recebido bem. Anda meio nervosa.
– Ora, meu filho, não se preocupe. Foi só uma visitinha sem
importância.
– Ela me contou que não quis tomar o chá. Algo o incomodou? Vou logo
pedindo desculpas...
– Não, nada disso. Apenas me lembrei de que uma confissão me aguardava
às sete. Vida de padre não tem folga.
– Sei. O senhor conheceu Luisinho, o nosso bebê?
E foi aí que o sacerdote se viu encurralado. Se negasse, mentiria e
mentir é pecado, Deus me perdoe! Se dissesse que sim, teria que encarar a
situação, digamos, surreal. Escolheu o que considerou a melhor conduta:
– Sim, meu filho. Eu vi o Luisinho.
– E o que o senhor achou dele?
– Um tanto quanto desbotado, mas é um bonito boneco.
O padre mal terminou a frase e Miguel desabou no primeiro banco da
matriz. Começou a desenrolar uma novela, cujo enredo exigia lágrimas. Contou
que, há quatorze longos anos, Estela deu à luz Luís Alfredo Castilho, o
Luisinho. Mas o menino só esquentou o colo da mãe por três meses, vitimado pela
pneumonia, que naquele ano enviou muitos anjos para o céu. Transtornada, a
mulher decidiu não acreditar que o destino poderia ser tão carrasco. Por dias
manteve o corpo do filho em casa. Assim que voltou de uma de suas andanças,
Miguel desconfiou do mau cheiro que emanava do berço. Luisinho já estava se
decompondo.
Boquiaberto, o padre não se conteve:
– Mas e então? O que você fez, homem de Deus?
Suspirante, Miguel continuou o roteiro macabro. Explicou que, ao
perceber que o olhar da mulher já não pertencia a esse mundo, tomou a decisão mais
difícil de sua vida: esperou Estela dormir, retirou o corpinho do berço e
providenciou o enterro. Na volta, comprou um boneco na loja de quinquilharias
da esquina e colocou no lugar. O mesmo boneco que o padre viu naquela tarde. O
boneco Luisinho.
– Desde então somos migrantes buscando a tranquilidade que possa
proteger nosso segredo. Estela cuida do filho com um amor puro. Não posso tirar
isso dela.
Padre Pedro teria que rezar muito para tentar entender e aceitar
aquele ato desesperado de um pai. Miguel pediu sigilo absoluto, mesmo sabendo
que isso era impossível. Logo surgiriam o zunzunzum e os olhares inquisidores.
Já era hora de partir de novo. Então o primeiro trem que saiu na manhã seguinte
levou para sempre a família Castilho. Jamais se teve notícias dela.
Sempre penso em como aquele pai conseguia passar os dias e os anos convivendo com um segredo que devia lhe corroer a alma. Seria ele culpado por pactuar com a mulher, atuando como cúmplice de seu desatino? Ou seria apenas alguém capaz de amar tanto outra pessoa, a ponto de viver para sempre uma triste fantasia? Difícil saber. Só sei que o portador dessa história garantiu que ainda hoje há quem jure que viu – por uma fresta da janela do vagão de passageiros – Estela mirando fixamente o marido, antes da partida. Depois fechou a persiana, despedindo-se de vez da cidade. Mas, antes, ela deu um beijo em seu bebê.
Conto extraído do livro “Coisas e Crônicas”.
NASCIMENTO,
Cíntia. Coisas e Crônicas. Rio de
Janeiro: Multifoco, 2016.