quinta-feira, 11 de maio de 2017

O bebê




Que caminhos somos capazes de percorrer para proteger quem amamos? E quanto aos segredos? Podemos guardá-los mesmo que sejam aterrorizantes? Dúvidas como estas me remetem a uma história, meio acontecida, meio inventada, meio imaginada, ouvida há muito tempo.

Alguém me contou que era quase inverno de 1958 quando aquela família desembarcou na cidade. Pai, mãe e bebê saíram do trem apressados. O destino era o casarão da Rua Onze, lacrado há anos. E em uma terra de tão poucas novidades, aquilo foi o suficiente para encabeçar a pauta da semana. Logo parte das fichas dos recém-chegados estava levantada. O pai, alto e elegante com seu chapéu de feltro cinza-azulado, era Miguel Castilho, um vendedor de livros. A pálida mãe, Estela, magra, não tão alta, trazia no rosto uma beleza suspeita, reforçada por olhos de um castanho vazio. E o bebê, enrolado em panos brancos com bolinhas amarelas, era um menino de poucos meses, como deduziram os que se achavam mais espertos. De fato, o que todos queriam mesmo saber era a razão daquele trio ter se mudado para um lugar no meio do nada.

– Ouvi dizer que viviam em Serra Pequena. Parece que a senhora sofre dos nervos e precisa de um lugar para descansar – anunciou o jornaleiro.

Então era isso.  E se o que o casal buscava era sossego, estava no lugar certo.  Passado o clímax da chegada, a vida seguiu um curso normal, desviado apenas pela observação minuciosa da vizinhança.  Se Estela ia à praça com o carrinho de bebê, era logo abordada:

– Que nenenzinho mais lindo! Posso ver a carinha dele?

– Melhor não. Tenho medo que se resfrie – era a resposta ouvida repetidas vezes, antes de a mulher tomar o rumo de casa.

A verdade é que quase um mês se passou e ninguém viu a face do tal menino. Claro que começaram as especulações.

– Nasceu defeituoso, o coitadinho. Ouvi dizer que tem dois buracos no lugar do nariz.

– Que nada! Deve ser é muito feio mesmo!

No gelo das noites, podia-se ouvir o chocalho do pequenino, que àquela altura já tinha o nome conhecido: Luisinho. Também se escutavam o acalanto da mãe e, vez ou outra, um choro bem fininho. Não demorou e o pai precisou se ausentar para oferecer seus livros aos arredores. Estela trancou-se com o bebê por uma semana, até que Pedro, o padre, sem esconder a bisbilhotice, arriscou uma visita.

– Como tem passado a senhora?

A mulher, sem alternativas, convidou o vigário para entrar e perguntou se aceitaria um chá:

– De erva-doce ou camomila, por favor.

Enquanto Estela esquentava a água na cozinha, o padre investigava a sala. A mobília gasta, mas ainda pomposa, já era sua conhecida, pois figurava como patrimônio do casarão. Assim como as cortinas amareladas, incapazes de bloquear a passagem do tempo. Tanto olhou que avistou, na porta do quarto, o que procurava. Com passos almofadados, caminhou até o carrinho de bebê e encontrou a criança mais uma vez coberta, quietinha, num sono profundo. Enfim veria o rosto daquele ser que tanto intrigava o seu rebanho. Levantou de leve o paninho de flanela que cobria a cabeça e o que se passou foi um espanto sem tamanho. Vestido com um macacãozinho de tricô listrado de verde e branco, o bebê não se movia, não respirava. E nem poderia. Pois ele era um boneco. Um boneco daqueles de plástico, com olhos azuis pintados. O certo é que a surpresa deixou o pároco sem palavras e sem vontade de tomar chá, qualquer que fosse o sabor. Inventou um imprevisto e deixou o casarão.

Quando retornou, naquela noite, Miguel soube da visita. Beijou Estela e saiu. É que já conhecia o desfecho daquela narrativa e quis se antecipar para proteger a mulher e – por que não dizer? ­– o filho.

Nem bem chegou à igreja, Miguel se deparou com padre Pedro, que de pronto interrompeu sua leitura, certo de que ouviria uma trama mais interessante.

– Soube que o senhor esteve lá em casa. Espero que Estela o tenha recebido bem. Anda meio nervosa.

– Ora, meu filho, não se preocupe. Foi só uma visitinha sem importância.

– Ela me contou que não quis tomar o chá. Algo o incomodou? Vou logo pedindo desculpas...

– Não, nada disso. Apenas me lembrei de que uma confissão me aguardava às sete. Vida de padre não tem folga.

– Sei. O senhor conheceu Luisinho, o nosso bebê?

E foi aí que o sacerdote se viu encurralado. Se negasse, mentiria e mentir é pecado, Deus me perdoe! Se dissesse que sim, teria que encarar a situação, digamos, surreal. Escolheu o que considerou a melhor conduta:

– Sim, meu filho. Eu vi o Luisinho.

– E o que o senhor achou dele?

– Um tanto quanto desbotado, mas é um bonito boneco.

O padre mal terminou a frase e Miguel desabou no primeiro banco da matriz. Começou a desenrolar uma novela, cujo enredo exigia lágrimas. Contou que, há quatorze longos anos, Estela deu à luz Luís Alfredo Castilho, o Luisinho. Mas o menino só esquentou o colo da mãe por três meses, vitimado pela pneumonia, que naquele ano enviou muitos anjos para o céu. Transtornada, a mulher decidiu não acreditar que o destino poderia ser tão carrasco. Por dias manteve o corpo do filho em casa. Assim que voltou de uma de suas andanças, Miguel desconfiou do mau cheiro que emanava do berço. Luisinho já estava se decompondo.

Boquiaberto, o padre não se conteve:

– Mas e então? O que você fez, homem de Deus?

Suspirante, Miguel continuou o roteiro macabro. Explicou que, ao perceber que o olhar da mulher já não pertencia a esse mundo, tomou a decisão mais difícil de sua vida: esperou Estela dormir, retirou o corpinho do berço e providenciou o enterro. Na volta, comprou um boneco na loja de quinquilharias da esquina e colocou no lugar. O mesmo boneco que o padre viu naquela tarde. O boneco Luisinho.

– Desde então somos migrantes buscando a tranquilidade que possa proteger nosso segredo. Estela cuida do filho com um amor puro. Não posso tirar isso dela.

Padre Pedro teria que rezar muito para tentar entender e aceitar aquele ato desesperado de um pai. Miguel pediu sigilo absoluto, mesmo sabendo que isso era impossível. Logo surgiriam o zunzunzum e os olhares inquisidores. Já era hora de partir de novo. Então o primeiro trem que saiu na manhã seguinte levou para sempre a família Castilho. Jamais se teve notícias dela.

Sempre penso em como aquele pai conseguia passar os dias e os anos convivendo com um segredo que devia lhe corroer a alma. Seria ele culpado por pactuar com a mulher, atuando como cúmplice de seu desatino? Ou seria apenas alguém capaz de amar tanto outra pessoa, a ponto de viver para sempre uma triste fantasia? Difícil saber. Só sei que o portador dessa história garantiu que ainda hoje há quem jure que viu – por uma fresta da janela do vagão de passageiros – Estela mirando fixamente o marido, antes da partida. Depois fechou a persiana, despedindo-se de vez da cidade. Mas, antes, ela deu um beijo em seu bebê.


Conto extraído do livro “Coisas e Crônicas”.

NASCIMENTO, Cíntia. Coisas e Crônicas. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016.