terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Contos (de) passageiros


Quantas histórias circulam pelos terminais da cidade? Quantas lembranças boas e ruins são carregadas repetidamente, pra lá e pra cá, pelas pessoas que caminham amontoadas e ao mesmo tempo tão solitárias? Agora que meus dias voltaram a ser pontuados por um entra e sai de ônibus, acabei me transformando em ouvinte – e até mesmo confidente – de roteiros novelescos, narrados por meus companheiros de viagem. Como aquele senhor de uns 75 anos, que outro dia já se sentou ao meu lado soltando a deixa:

– Mas que beleza que ficou esse bairro, né, minha filha?! Eu me lembro de quando aqui não tinha quase nada.

E da primeira observação, tão corriqueira, foi um pulo para se desenrolar uma saga que começou quando o avô dele era escravo em uma fazenda no interior do Rio. O pai cresceu na mesma fazenda, onde ele também foi criado e morou até a adolescência.

– Papai pegava filhote de cascavel com a mão, quando ia colher o café. Mostrava pra gente e depois deixava a bichinha voltar pro mato. Uma beleza só!

Do cafezal, pulamos para as comidas da roça, milho assado, broa embrulhada na folha de bananeira. Vi que os olhos brilhantes dele festejavam aquela compartilhada visita ao passado caipira. Depois contou que, quando o pai morreu, partiu para a cidade grande em busca de trabalho, o que encontrou com facilidade naquele tempo. Casou, teve três filhos, agora tem cinco netos, uma empresa própria e algum tempo sobrando para pensar nas coisas do mundo.

– Minha mulher me largou, mas a gente ainda se dá bem. É a vida, minha filha. É a vida.

No ponto final, o agradável falante apertou a minha mão, muito agradecido pelo favor que uma completa estranha havia lhe concedido: parar para ouvir o que ele tinha para contar.

Em outra dessas curtas viagens, a personagem principal foi uma distinta dama, que me confessou seus tão orgulhosamente conservados 84 anos. Já se abancou contrariada, porque a passageira da frente não quis tirar a sacola para que ela se sentasse.

– Mas que coisa! Essa gente não tem mesmo educação. Onde já se viu?! ­ – cochichou inconformada.

Logo a contrariedade transformou-se em uma conversa gostosa, ilustrada por passagens da sua vida.

– Quando me mudei de São Paulo pra cá, fiquei muito, muito triste. Chorava todos os dias. Mas meu marido quis vir por causa dos negócios. Não tive escolha. Depois aprendi a gostar daqui – desabafou sem economizar nas letras.

Com uma identificação imediata de sentimentos, falamos dos lugares paulistanos que conhecemos em comum e comemoramos boas coincidências.  Altiva, ela me contou da família de três filhos e dois netos, das boas e das duras coisas da viuvez. Também mencionou as viagens, as tardes de caminhada no condomínio, a nostalgia da juventude. Já éramos amigas íntimas na última parada. E antes de ela sair correndo para pegar outro ônibus e encontrar o cabeleireiro de muitos anos, foi de saudade o nosso abraço de despedida, com um “tomara que a gente se veja de novo”.


 Não dá para dizer que tudo é tão doce e poético nas minhas idas e vindas cotidianas. Bem longe disso.  Mas posso afirmar que tenho tido sorte. Esses contos passageiros tornam o trajeto mais leve e renovam minha esperança na humanidade, nesta época em que as pessoas chegam a se assustar quando você diz bom dia. Por isso eu não me importo de bancar a analista.  Acho até engraçado como atraio tantos inesperados contistas. Talvez alguma coisa aponte para mim emitindo uma mensagem, tipo: “Pode se sentar aqui que ela vai te ouvir”. E vou mesmo. 

Cíntia Nascimento