Quantas
histórias circulam pelos terminais da cidade? Quantas lembranças boas e ruins
são carregadas repetidamente, pra lá e pra cá, pelas pessoas que caminham amontoadas
e ao mesmo tempo tão solitárias? Agora que meus dias voltaram a ser pontuados
por um entra e sai de ônibus, acabei me transformando em ouvinte – e até mesmo
confidente – de roteiros novelescos, narrados por meus companheiros de viagem.
Como aquele senhor de uns 75 anos, que outro dia já se sentou ao meu lado soltando
a deixa:
– Mas que
beleza que ficou esse bairro, né, minha filha?! Eu me lembro de quando aqui não
tinha quase nada.
E da primeira
observação, tão corriqueira, foi um pulo para se desenrolar uma saga que
começou quando o avô dele era escravo em uma fazenda no interior do Rio. O pai
cresceu na mesma fazenda, onde ele também foi criado e morou até a adolescência.
– Papai
pegava filhote de cascavel com a mão, quando ia colher o café. Mostrava pra gente
e depois deixava a bichinha voltar pro mato. Uma beleza só!
Do
cafezal, pulamos para as comidas da roça, milho assado, broa embrulhada na
folha de bananeira. Vi que os olhos brilhantes dele festejavam aquela compartilhada
visita ao passado caipira. Depois contou que, quando o pai morreu, partiu para a
cidade grande em busca de trabalho, o que encontrou com facilidade naquele
tempo. Casou, teve três filhos, agora tem cinco netos, uma empresa própria e algum
tempo sobrando para pensar nas coisas do mundo.
– Minha
mulher me largou, mas a gente ainda se dá bem. É a vida, minha filha. É a vida.
No ponto
final, o agradável falante apertou a minha mão, muito agradecido pelo favor que
uma completa estranha havia lhe concedido: parar para ouvir o que ele tinha para
contar.
Em outra
dessas curtas viagens, a personagem principal foi uma distinta dama, que me
confessou seus tão orgulhosamente conservados 84 anos. Já se abancou
contrariada, porque a passageira da frente não quis tirar a sacola para que ela
se sentasse.
– Mas que
coisa! Essa gente não tem mesmo educação. Onde já se viu?! – cochichou inconformada.
Logo a
contrariedade transformou-se em uma conversa gostosa, ilustrada por passagens da
sua vida.
– Quando me
mudei de São Paulo pra cá, fiquei muito, muito triste. Chorava todos os dias.
Mas meu marido quis vir por causa dos negócios. Não tive escolha. Depois
aprendi a gostar daqui – desabafou sem economizar nas letras.
Com uma
identificação imediata de sentimentos, falamos dos lugares paulistanos que
conhecemos em comum e comemoramos boas coincidências. Altiva, ela me contou da família de três
filhos e dois netos, das boas e das duras coisas da viuvez. Também mencionou as
viagens, as tardes de caminhada no condomínio, a nostalgia da juventude. Já
éramos amigas íntimas na última parada. E antes de ela sair correndo para pegar
outro ônibus e encontrar o cabeleireiro de muitos anos, foi de saudade o nosso
abraço de despedida, com um “tomara que a gente se veja de novo”.
Não dá para dizer que tudo é tão doce e
poético nas minhas idas e vindas cotidianas. Bem longe disso. Mas posso afirmar que tenho tido sorte. Esses
contos passageiros tornam o trajeto mais leve e renovam minha esperança na
humanidade, nesta época em que as pessoas chegam a se assustar quando você diz bom
dia. Por isso eu não me importo de bancar a analista. Acho até engraçado como atraio tantos inesperados
contistas. Talvez alguma coisa aponte para mim emitindo uma mensagem, tipo: “Pode
se sentar aqui que ela vai te ouvir”. E vou mesmo.
Cíntia Nascimento