Elas
não paravam de morrer. Uma a cada mês. Às vezes até com um intervalo menor. De
tal modo que se eternizaram como protagonistas de memórias do tipo que a gente
gostaria de não ter que carregar. Eram idosas, todas as cinco. Sozinhas,
solitárias, desesperadas por afeto. Abriam suas casas para o estuprador homicida
e compunham a série de crimes que assombrava a cidade.
Tudo
aconteceu na primeira metade dos anos 1990, contribuindo para a coleção de barbaridades
que fazia parte do meu cotidiano de repórter de polícia de um jornal de Juiz de
Fora, em Minas. A verdade é que naquela época a atração por uma boa manchete empurrava
meus passos de jornalista iniciante. Assim, presenciei – muito mais de perto do
que deveria – cenas que o cinema se empenha em reproduzir em seus mais fortes
filmes policiais: sangue escorrendo pelo chão, móveis quebrados, sujeira, olhos
arregalados, mãos atadas e um mau cheiro insuportável. E pode-se dizer que este
último tornava-se uma espécie de denunciador do crime. Por morarem sozinhas, as
vítimas muitas vezes eram encontradas dias após a morte. Sendo assim, era o ranço
da decomposição quem batia à porta dos vizinhos, que só então davam pela falta
das desafortunadas.
Numa
dessas ocasiões, já iniciava a noite quando cheguei ao local para acompanhar o
trabalho dos peritos. A casinha humilde, de alguém que tinha pouco a agradecer,
estava revirada. Amarrada à cama, a morta, uma senhora negra, seminua, quase 70
anos, aguardava sua remoção. Havia sido estuprada e depois (ou antes) estrangulada
com o fio do ferro de passar roupas. Para completar o cenário desolador, do
lado de fora um cachorro, ainda preso com uma corrente, latia atormentado, como
uma testemunha que queria ser ouvida. E o pior de tudo: lá estava ele, aquele fedor
único que se instalava nas entranhas da gente.
Com
quase certeza, assim como suas companheiras de tragédia, aquela mulher deu
passe livre para seu algoz. Uma conversa num baile, num barzinho qualquer, um
excesso de confiança – ou de ingenuidade, talvez –, uma lábia articulada somada
à ânsia por ser amada. Enfim um convite para entrar e a conclusão tão brutal.
Foi
então depois de algumas outras mortes que um jovem serial killer teve sua carreira encerrada e, segundo me contaram, ainda mata seus dias na cadeia. A loucura causada pelo uso de drogas foi a melhor
defesa que conseguiu apresentar para tentar justificar todo o terror que marcou
aqueles meses sangrentos.
Hoje eu já
não vejo mais cenas como aquela. Também não subo os morros para acompanhar a
prisão de traficantes e não vejo mais corpos de famílias inteiras destroçados
por acidentes de trânsito. Tampouco chego a festas que terminaram em tiros,
onde os cadáveres ainda estão quentes, caídos no chão. E, o melhor, não preciso
mais ouvir o relato da mãe que acabou de perder o filho em um assalto. Digamos
que num determinado segundo de lucidez achei que preferia e merecia ver coisas
mais bonitas.
Mas do
muito que vi, um elemento em especial não me abandonou. Aquele que reinava
soberano nos locais dos homicídios. Aquele que era o anunciador do crime, que
servia de ferramenta para que as vítimas pudessem gritar: “Olhem para mim. Eu
estou aqui!”. Sempre que me lembro dele penso nas tantas futilidades com as
quais cercamos nossas vidas, nas preocupações inúteis que tomam nossos dias.
Queremos coisas tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes, para no final nos
depararmos com um ingrediente comum, que coloca todos num mesmo círculo, sem
qualquer distinção. Para quê tantos conflitos e insatisfações se não há como alterar
esse arremate da vida? No desfecho sempre chega, adiantado ou atrasado, aquele
que nos iguala, que nos denuncia. Aquele que se impõe quando o frasco se quebra:
o cheiro da morte.
Cíntia Nascimento