segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O cheiro da morte



        Elas não paravam de morrer. Uma a cada mês. Às vezes até com um intervalo menor. De tal modo que se eternizaram como protagonistas de memórias do tipo que a gente gostaria de não ter que carregar. Eram idosas, todas as cinco. Sozinhas, solitárias, desesperadas por afeto. Abriam suas casas para o estuprador homicida e compunham a série de crimes que assombrava a cidade. 


        Tudo aconteceu na primeira metade dos anos 1990, contribuindo para a coleção de barbaridades que fazia parte do meu cotidiano de repórter de polícia de um jornal de Juiz de Fora, em Minas. A verdade é que naquela época a atração por uma boa manchete empurrava meus passos de jornalista iniciante. Assim, presenciei – muito mais de perto do que deveria – cenas que o cinema se empenha em reproduzir em seus mais fortes filmes policiais: sangue escorrendo pelo chão, móveis quebrados, sujeira, olhos arregalados, mãos atadas e um mau cheiro insuportável. E pode-se dizer que este último tornava-se uma espécie de denunciador do crime. Por morarem sozinhas, as vítimas muitas vezes eram encontradas dias após a morte. Sendo assim, era o ranço da decomposição quem batia à porta dos vizinhos, que só então davam pela falta das desafortunadas.


        Numa dessas ocasiões, já iniciava a noite quando cheguei ao local para acompanhar o trabalho dos peritos. A casinha humilde, de alguém que tinha pouco a agradecer, estava revirada. Amarrada à cama, a morta, uma senhora negra, seminua, quase 70 anos, aguardava sua remoção. Havia sido estuprada e depois (ou antes) estrangulada com o fio do ferro de passar roupas. Para completar o cenário desolador, do lado de fora um cachorro, ainda preso com uma corrente, latia atormentado, como uma testemunha que queria ser ouvida. E o pior de tudo: lá estava ele, aquele fedor único que se instalava nas entranhas da gente.


        Com quase certeza, assim como suas companheiras de tragédia, aquela mulher deu passe livre para seu algoz. Uma conversa num baile, num barzinho qualquer, um excesso de confiança – ou de ingenuidade, talvez –, uma lábia articulada somada à ânsia por ser amada. Enfim um convite para entrar e a conclusão tão brutal. 


        Foi então depois de algumas outras mortes que um jovem serial killer teve sua carreira encerrada e, segundo me contaram, ainda mata seus dias na cadeia. A loucura causada pelo uso de drogas foi a melhor defesa que conseguiu apresentar para tentar justificar todo o terror que marcou aqueles meses sangrentos. 


Hoje eu já não vejo mais cenas como aquela. Também não subo os morros para acompanhar a prisão de traficantes e não vejo mais corpos de famílias inteiras destroçados por acidentes de trânsito. Tampouco chego a festas que terminaram em tiros, onde os cadáveres ainda estão quentes, caídos no chão. E, o melhor, não preciso mais ouvir o relato da mãe que acabou de perder o filho em um assalto. Digamos que num determinado segundo de lucidez achei que preferia e merecia ver coisas mais bonitas. 


Mas do muito que vi, um elemento em especial não me abandonou. Aquele que reinava soberano nos locais dos homicídios. Aquele que era o anunciador do crime, que servia de ferramenta para que as vítimas pudessem gritar: “Olhem para mim. Eu estou aqui!”. Sempre que me lembro dele penso nas tantas futilidades com as quais cercamos nossas vidas, nas preocupações inúteis que tomam nossos dias. Queremos coisas tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes, para no final nos depararmos com um ingrediente comum, que coloca todos num mesmo círculo, sem qualquer distinção. Para quê tantos conflitos e insatisfações se não há como alterar esse arremate da vida? No desfecho sempre chega, adiantado ou atrasado, aquele que nos iguala, que nos denuncia. Aquele que se impõe quando o frasco se quebra: o cheiro da morte. 



Cíntia Nascimento