terça-feira, 28 de outubro de 2014

O mistério das galinhas



Para onde iam as galinhas todo sábado? Este era o mistério que cercava minha até então curta vidinha de criança. Elas desapareciam do terreiro sem deixar vestígios. Nem um só sinal. Nem uma só peninha.


Pequenina, eu passava os dias a perseguir as galinhas do meu avô. Eram elas de todo tamanho, cor e idade. Puxava pelo rabo, espantava com uma carreira tão grande que as fazia quase levantar voo. Mas é verdade que também acarinhava, dava milho, água, conversava. E, de tardinha, ajudava meu avô a recolher minhas queridas para o porão, onde cada uma passava a noite despreocupada, sonhando ser acordada pelo canto do seu galã favorito, o galo.


Mas algo muito estranho movimentava aquela rotina.  É que, sempre no final do sétimo dia, o quintal ficava com espaços vagos, antes ocupados por minhas barulhentas amigas. Eu as via partir uma a uma, sem entender para onde estavam sendo levadas.  Simplesmente eram carregadas até o portão dos fundos da casa e nunca mais retornavam. O que havia de tão perigoso além daquele velho portão? Houve quem me dissesse – achando que criança acredita em qualquer bobagem – que as galinhas estavam indo para casa. “Mas aqui não é a casa delas?”, era o que eu indagava sem receber resposta convincente.  


Então uma breve parte da minha infância foi pontuada por esta dúvida que andou me tirando alguns minutinhos de sono. Até que um dia, sentindo o cheiro que vinha do forno, eu abusei de meus poucos conhecimentos e decifrei o mistério.   Aquele povo alegre e falante que ia aos sábados visitar meu avô estava apenas em busca do futuro almoço de domingo. Assada, ensopada, com batatas ou quiabo. Várias eram as opções que esperavam minhas bichinhas, aquelas que eu tinha visto crescer. Estava tudo explicado: meu avô era um vendedor de galinhas. E vendia até as que eram as minhas mais fiéis companheiras. Sem dó nem piedade.


Tão cruel quanto me deparar com o assustador fim do meu enigma era o pensamento que ficava me atormentando: como meu avô poderia ficar feliz vendo a partida das galinhas, se sabia que elas caminhavam para a morte? E ainda por cima com os pés amarrados, o que me deixava ainda mais desolada? Foi minha primeira tragédia particular. Um drama total.


Mas como desde sempre tentei ser atraída pelas boas novidades do mundo, minha tristeza sumia assim que via a chegada de muitos e lindos pintinhos. E, para minha sorte, eram dúzias deles. Já desapegada de qualquer ressentimento, eu os colocava pra brincar com as vaquinhas de chuchu e com os bonecos de espiga de milho, também protagonistas naquela minha trama. Eles adoravam! Melhor é que isso me ajudava a seguir a vida sem pensar no futuro. Ou pelo menos, sem pensar no próximo sábado. 


Cíntia Nascimento 



quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Doce deleite










Tia Ilda, bolo, suspiro.
Tia Zé, virado de banana.
Tia Luzia, docinho de leite.
E eu, doce deleite.

Tia Helena, bananada, pamonha.
Tia Dita, café com biscoito.
Tia Sebastiana, pão de queijo.
E eu retribuía com beijo.

Tia Tereza, rosca, quitanda.
Tia Aparecida, bolinho de polvilho.
Tia Fia, bolo de laranja.
Tia Margarida, pão assado.
E eu, agora, só queria o passado.


Cíntia Nascimento

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Existência



Menino que pula,
tropeça, levanta.
Sabe que pode,
é manhã de sol.

Menino que anda,
não sabe pra onde.
Seu medo ainda se esconde,
é manhã de sol.

Menino que corre,
seu tempo escorre.
Caminha apressado,
caminho encurtado,
já é tarde de sol.

Menino cansado, olhar já parado.
Não pula, não anda, não corre.
Pois é noite.
Sem sol.


Cíntia Nascimento