quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Continua lindo



Meus amigos me perguntam se eu não tenho medo de morar no Rio. Dá pra entender: é só somar a quantidade de tiros e outros danos que saltam diariamente do noticiário. Pensam que aqui as pessoas vivem em trincheiras. Mas, acalmem-se, queridos amigos! Felizmente, nesta terra existem locais onde os dias são tranquilos e até poeticamente selvagens. Onde ainda é possível dizer que, apesar de tudo, o Rio continua lindo.

Já falei dos jacarés do Recreio, que lagarteiam na beira do canal, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. O que dizer então de cachorro, gato e outros seres de quatro patas? Estes são figurinhas repetidas por aqui e desfilam soberanos o tempo inteiro. Outro dia, um gambá me acompanhou rua afora até a academia. Isso sem falar dos miquinhos que quase pulam na cabeça da gente, nestas quentinhas tardes cariocas. Gostoso também é ver, misturadas ao cenário da cidade, famílias inteiras de capivaras descansando, analisando a vida. Sorte é que ainda não me deparei com nenhuma cobra pelo caminho. Só no sentido figurado.

Não que eu queira camuflar a violência. Para tal proeza precisaria muito mais do que lançar mão de belas palavras e elogiar a fauna. Mas a vida aqui – em determinados territórios, é claro – pode, sim, ser digna como em qualquer cidade do interior. Tão digna como a visita que recebi ontem. Um casal de papagaios pousou na minha varanda e passamos horas conversando sobre tudo. Um verdadeiro banquete para os ouvidos. Trocamos receitas, segredos, juras de amor e amizade, comemoramos a primavera. Depois, os dois voaram livres e juntinhos. Só espero que voltem logo. Da próxima vez, quero servir um cafezinho.


Cíntia Nascimento

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Mineirices



A gente que nasce em Minas Gerais não tem jeito: carrega pela vida uma infinidade de mineirices que sobrevivem ao tempo e às mudanças. Não há novo sotaque ou hábito, por mais diferentes que sejam, que nos roubem aquele jeito único de falar e de encarar as coisas do mundo. É um sentimento tão forte, mas tão forte, que nos entrega em qualquer conversa. Basta abrir a boca pra ouvir: “Você é de Minas, não é?”. Sim, eu sou de Minas. 

Outro dia, escutei minha prima dizer que não fazia tal bolo porque ele ficava “batumado” ­(não crescia). Tipo de fala que só ouço em terras mineiras. Comecei então a pensar no doce dialeto formado por expressões que cercaram grande parte da minha vida. Como “cambota”, a cambalhota que eu, criança, virava na grama com os amigos, ficando de “ponta-cabeça”, o que dispensa explicação. Sem falar que era o maior “guaiú”, uma bagunça danada. Mas difícil mesmo era desviar dos “mandruvás”, aquelas lagartas que andam pelas folhas. 

Não me esqueço da vez em que virei para uma colega carioca e pedi pra ela “cochar” bem o parafuso. Ela parou no mesmo momento, impressionada, e me olhou perguntativa, querendo saber o que diabos aquilo significava. Estranhei ela não entender algo tão óbvio. Cochar é apertar, ora essa!
        
     Agora, o que realmente vou carregar pra sempre comigo é o “quéde”. Minha avó passou seus dias a me corrigir: “Não é cadê, menina! É quéde.” E pra não contrariá-la, eu fingia que aceitava a correção, com a certeza absoluta de que ela estava errada. Só depois de muitos, muitos anos, é que fui descobrir que o “quéde” é uma espécie de abreviatura de “que é de” que, na verdade, é o mesmo “cadê”. Está certo. Como todas as mineirices.

        Eu poderia escrever aqui um colosso de expressões que tornam nossas montanhas ainda mais aconchegantes, mas sei que deixarei muitas de fora. É que infelizmente estou um pouco destreinada do meu idioma nativo, por ter deixado minha terra já há algum tempo. Mas me lembro agora do “ara seja”, que seria o famoso “que pena!”. Também tem o “não orna”, que dizemos quando alguma coisa não combina.   

        Legal é que toda vez que ouço “Você é de Minas?”, vejo o ar de satisfação – e até uma pontinha de inveja ­– na cara do perguntador. É que não há quem não saiba que Minas tem tudo de bom. E isso vai muito além da famosa hospitalidade e do pão de queijo. Tem virado de banana, de ovo, de feijão. Tem volta na praça, brincadeira na rua, fogão de lenha, café no coador de pano. Comadres que se ajudam, amizades que duram uma vida inteira. Tem poesia no pasto verdinho, galinha e pé de couve no quintal. Tem um povo simples, que ainda acredita que a generosidade pode sim estar presente em cada pequeno gesto. Lá ninguém acha que isso está fora de moda.

        Eu saí de Minas. Mas, apesar de soar um pouco piegas, posso dizer que Minas nunca sairá de mim. Só lamento não poder sentir mais vezes o cheirinho do bolinho de polvilho pulando da panela e não poder perder – ou melhor, ganhar – tardes inteiras proseando com amigos sobre tudo e sobre nada, na porta de casa. É a vida. Ara seja...


Cíntia Nascimento