quinta-feira, 24 de julho de 2014

O crachá




      
        A manhã era igual a tantas outras, com o comércio levantando as portas, os porteiros espantando a poeira das calçadas, o cheiro de café pulando das mesas. E eu seguia meu caminho para o trabalho, já carregando na bolsa e nos ombros o cansaço de outros tantos dias. Foi quando ele passou por mim. Altivo, passos rápidos e firmes, murmurando preocupações num idioma só dele. Magro, moreno, uns 30 e poucos anos. Era apenas mais uma figura naquele princípio de caos carioca, mas um detalhe o tornou inesquecível: trazia um crachá pendurado no pescoço.
        
       O fato é que no dia anterior eu também havia recebido o crachá da empresa, com meu nome e minha foto. E era como se, a partir daquela data, depois de alguns anos sem emprego fixo, eu tivesse de novo voltado a existir – pelo menos no mundo corporativo. Percebi que talvez fosse para cultivar esta sensação que as pessoas faziam uma questão tão grande de ostentar os crachás no pescoço, como que dizendo: “Eu existo”. Nos restaurantes, nas lanchonetes, dentro da empresa, nos ônibus. Todo mundo desfilava com aquele objeto, como um troféu conquistado com mérito. Era quase uma extensão do próprio ser, uma marca de nascença. Então, se isso já havia se tornado algo tão corriqueiro, por que o crachá daquele homem me chamou tanto a atenção naquela manhã? 

       Porque ele era um mendigo. Tinha as roupas imundas e rasgadas, o cabelo bagunçado. Sapatos eu nem me lembro se usava. Mas sei que havia uma gravata e ele, o crachá, que sustentava sua postura, que o incluía naquele cenário. Com o crachá ele também existia e então também ocupava um lugar no mundo. Nem que fosse em sua vida imaginária, onde certamente era um funcionário de uma grande empresa, um pai de família que podia tirar férias, ter 13º e receber o auxílio-creche. Ele tinha sim um crachá. Mas não o respeito.

       Isso já faz tempo, mas até hoje tento imaginar quem era aquele homem, quem já havia sido e quem gostaria de ser. O crachá era mesmo dele ou foi resgatado de alguma lata de lixo? Nosso encontro me fez pensar em todos os crachás que carregamos pela vida afora, tentando provar que merecemos ser notados. Somei as horas estagnadas no trânsito, as noites pouco e tão mal dormidas, as histórias infantis que eu estava deixando de contar e o carinho que devia às pessoas que eu amava. Seria mesmo aquele pedaço de plástico tão valioso?
 
O que o homem do crachá nunca saberá é que dissipou qualquer dúvida que ainda me restava: no dia seguinte, deixei a empresa. E devolvi o meu crachá. 

Cíntia Nascimento