A
manhã era igual a tantas outras, com o comércio levantando as portas, os
porteiros espantando a poeira das calçadas, o cheiro de café pulando das mesas.
E eu seguia meu caminho para o trabalho, já carregando na bolsa e nos ombros o
cansaço de outros tantos dias. Foi quando ele passou por mim. Altivo, passos rápidos
e firmes, murmurando preocupações num idioma só dele. Magro, moreno, uns 30 e
poucos anos. Era apenas mais uma figura naquele princípio de caos carioca, mas
um detalhe o tornou inesquecível: trazia um crachá pendurado no pescoço.
O
fato é que no dia anterior eu também havia recebido o crachá da empresa, com
meu nome e minha foto. E era como se, a partir daquela data, depois de alguns
anos sem emprego fixo, eu tivesse de novo voltado a existir – pelo menos no
mundo corporativo. Percebi que talvez fosse para cultivar esta sensação que as
pessoas faziam uma questão tão grande de ostentar os crachás no pescoço, como
que dizendo: “Eu existo”. Nos restaurantes, nas lanchonetes, dentro da empresa,
nos ônibus. Todo mundo desfilava com aquele objeto, como um troféu conquistado
com mérito. Era quase uma extensão do próprio ser, uma marca de nascença. Então,
se isso já havia se tornado algo tão corriqueiro, por que o crachá daquele
homem me chamou tanto a atenção naquela manhã?
Porque
ele era um mendigo. Tinha as roupas imundas e rasgadas, o cabelo bagunçado. Sapatos
eu nem me lembro se usava. Mas sei que havia uma gravata e ele, o crachá, que
sustentava sua postura, que o incluía naquele cenário. Com o crachá ele também
existia e então também ocupava um lugar no mundo. Nem que fosse em sua vida
imaginária, onde certamente era um funcionário de uma grande empresa, um pai de
família que podia tirar férias, ter 13º e receber o auxílio-creche. Ele tinha
sim um crachá. Mas não o respeito.
Isso já
faz tempo, mas até hoje tento imaginar quem era aquele homem, quem já havia
sido e quem gostaria de ser. O crachá era mesmo dele ou foi resgatado de alguma
lata de lixo? Nosso encontro me fez pensar em todos os crachás que carregamos
pela vida afora, tentando provar que merecemos ser notados. Somei as horas estagnadas
no trânsito, as noites pouco e tão mal dormidas, as histórias infantis que eu estava
deixando de contar e o carinho que devia às pessoas que eu amava. Seria mesmo
aquele pedaço de plástico tão valioso?
O que o homem
do crachá nunca saberá é que dissipou qualquer dúvida que ainda me restava: no
dia seguinte, deixei a empresa. E devolvi o meu crachá.
Cíntia Nascimento
Cíntia Nascimento