Meus pais têm, em Minas, uma vizinha que eu queria pra mim. É a dona Dulce. A doce dona Dulce.
Com seus 86 anos, cabelos brancos arrumados e vestido florido impecável, mora
sozinha num apartamento de fundos, no quarto andar. Vez ou outra é vista
carregando suas sacolinhas de compras, sempre com um sorriso de criança em dia
de festa.
No último
Natal, quando as famílias se acham imbatíveis, tivemos a ideia de chamar dona
Dulce para cear com a gente. “Tão solitária, tadinha... Dá dó pensar nela
passando a noite sozinha”. E fomos minha mãe e eu até a porta da vizinha,
certas de que estávamos representando Papai Noel.
"Entrem,
minhas queridas!", disse, numa saudação tão sincera, que de negar ninguém teria
coragem. Entramos. E de cara vi que aquele era um território de lembranças.
Quadros com fotos de gerações inteiras, estante com conjunto de chá de
porcelana azul com bule e mesinha de canto em estilo rococó. Um santuário com
coisinhas e móveis que pareciam estar ali só para não deixá-la esquecer de
que um dia sua vida foi agitada, importante.
Logo foi recusando
o convite para a ceia. Não poderia se ausentar porque precisava estar a postos
quando os filhos e netos ligassem. “Ficam preocupadíssimos se não me acham!”, explicou
prontamente. “Além disso, quero ver o show do Roberto Carlos. Não perco por nada!”.
Muito compreensível. Apesar do nosso desapontamento, já que contávamos com aquela
ilustre convidada para diferenciar nossa noite.
Rapidamente
emendou suas justificativas numa conversa gostosa, que fiz questão de
alimentar. Nomeou foto por foto e falou do paradeiro de cada uma daquelas
personagens com trajes de baile, becas e roupinhas de bebê. A neta que
é médica e mora em São Paulo, o filho que se mudou para a Europa, o marido que
já partiu há muito, muito tempo. Depois foi a vez dos objetos. “Vem gente de longe aqui querendo comprar minha mesinha, mas eu não vendo, não!”,
gabou-se, toda faceira. Contou que a tigela de bronze estava manchada porque a
cunhada – que danada! – plantou flor dentro e deixou ao relento. “Onde já se
viu uma coisa dessas?!”, perguntava e balançava as mãozinhas. O tal jogo de chá
azul, que tanto encheu meus olhos, era um tesouro guardado desde pequenininha. “Ganhei da minha bisavó.”, disse enquanto eu mentalmente fazia as
contas.
E ela seguiu recitando sua história ao mesmo tempo em que, atenta ao relógio,
ralhava com a faxineira – “Vai perder seu ônibus, Maria!” E eu pensava onde
estava com a cabeça por até então não ter pensado em conhecer melhor dona
Dulce. Saímos do apartamento, mas deixei lá a vontade de ficar e continuar
ouvindo aquela voz meiga, saudosa e nada triste.
Em algumas
tardes cariocas, imagino ouvir dona Dulce batendo à minha porta com um pratinho
de biscoito de nata que acabou de tirar do forno. Também vejo nós duas tomando
chá – podia ser nas minhas xícaras mesmo – enquanto ela me fala mais sobre suas
saudades.
Fico aqui
pensando nela no seu apartamento tão nostálgico, sentadinha na poltrona
de couro vermelho, olhando para suas fotos, ouvido ligado ao telefone. Embora
sozinha, me deixou a impressão de estar feliz em seu espaço, liberta de seus
medos, certa de que cumpriu sua missão no mundo. Não me pareceu abandonada nem
solitária. Afinal vive cercada por suas relíquias e acompanhada de seu baú cheio
de memórias de velhos dias alegres, embaladas por canções do Roberto. Posso
estar enganada, é verdade. Mas de uma coisa tenho certeza: queria mesmo dona
Dulce pra mim.