segunda-feira, 19 de maio de 2014

Vizinha


Meus pais têm, em Minas, uma vizinha que eu queria pra mim. É a dona Dulce. A doce dona Dulce. Com seus 86 anos, cabelos brancos arrumados e vestido florido impecável, mora sozinha num apartamento de fundos, no quarto andar. Vez ou outra é vista carregando suas sacolinhas de compras, sempre com um sorriso de criança em dia de festa.


No último Natal, quando as famílias se acham imbatíveis, tivemos a ideia de chamar dona Dulce para cear com a gente. “Tão solitária, tadinha... Dá dó pensar nela passando a noite sozinha”. E fomos minha mãe e eu até a porta da vizinha, certas de que estávamos representando Papai Noel.


"Entrem, minhas queridas!", disse, numa saudação tão sincera, que de negar ninguém teria coragem. Entramos. E de cara vi que aquele era um território de lembranças. Quadros com fotos de gerações inteiras, estante com conjunto de chá de porcelana azul com bule e mesinha de canto em estilo rococó. Um santuário com coisinhas e móveis que pareciam estar ali só para não deixá-la esquecer de que um dia sua vida foi agitada, importante.  


Logo foi recusando o convite para a ceia. Não poderia se ausentar porque precisava estar a postos quando os filhos e netos ligassem. “Ficam preocupadíssimos se não me acham!”, explicou prontamente. “Além disso, quero ver o show do Roberto Carlos. Não perco por nada!”. Muito compreensível. Apesar do nosso desapontamento, já que contávamos com aquela ilustre convidada para diferenciar nossa noite. 


Rapidamente emendou suas justificativas numa conversa gostosa, que fiz questão de alimentar. Nomeou foto por foto e falou do paradeiro de cada uma daquelas personagens com trajes de baile, becas e roupinhas de bebê. A neta que é médica e mora em São Paulo, o filho que se mudou para a Europa, o marido que já partiu há muito, muito tempo. Depois foi a vez dos objetos. “Vem gente de longe aqui querendo comprar minha mesinha, mas eu não vendo, não!”, gabou-se, toda faceira. Contou que a tigela de bronze estava manchada porque a cunhada – que danada! – plantou flor dentro e deixou ao relento. “Onde já se viu uma coisa dessas?!”, perguntava e balançava as mãozinhas. O tal jogo de chá azul, que tanto encheu meus olhos, era um tesouro guardado desde pequenininha. “Ganhei da minha bisavó.”, disse enquanto eu mentalmente fazia as contas.


E ela seguiu recitando sua história ao mesmo tempo em que, atenta ao relógio, ralhava com a faxineira – “Vai perder seu ônibus, Maria!” E eu pensava onde estava com a cabeça por até então não ter pensado em conhecer melhor dona Dulce. Saímos do apartamento, mas deixei lá a vontade de ficar e continuar ouvindo aquela voz meiga, saudosa e nada triste.


Em algumas tardes cariocas, imagino ouvir dona Dulce batendo à minha porta com um pratinho de biscoito de nata que acabou de tirar do forno. Também vejo nós duas tomando chá – podia ser nas minhas xícaras mesmo – enquanto ela me fala mais sobre suas saudades. 


Fico aqui pensando nela no seu apartamento tão nostálgico, sentadinha na poltrona de couro vermelho, olhando para suas fotos, ouvido ligado ao telefone. Embora sozinha, me deixou a impressão de estar feliz em seu espaço, liberta de seus medos, certa de que cumpriu sua missão no mundo. Não me pareceu abandonada nem solitária. Afinal vive cercada por suas relíquias e acompanhada de seu baú cheio de memórias de velhos dias alegres, embaladas por canções do Roberto. Posso estar enganada, é verdade. Mas de uma coisa tenho certeza: queria mesmo dona Dulce pra mim.