quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Picadeiro


Um circo se instalou perto do meu bairro. Vi no outro dia, todo bonito, grande, chique, como aqueles que a gente assiste nos filmes. Devia ser hora de espetáculo, pois uma multidão se organizava para entrar e garantir seu lugar sob aquela lona enorme e colorida. E vendo aquela gente feliz e entusiasmada, senti saudades. De outros tempos, de outros picadeiros.

“Hoje tem espetáculo? Tem, sim, senhor!”. Ainda ouço o som abafado que vinha daquele carrinho capenga. Ele percorria as ruas da minha pequena cidade, anunciando um dos acontecimentos mais importantes daquela nossa vida arrastada de interior: a chegada do circo.

Era uma ocasião diferente de tudo, que trazia uma transformação ímpar. As pessoas ficavam mais alegres, leves, curiosas, sem medo de sonhar. Como se uma aura mágica comandasse nossos passos. Os dias assumiam tons de balões coloridos e coisas incríveis aconteciam. Pelo menos era assim que eu percebia, ostentando meus oito, nove anos. O bom era que todo circo sempre se instalava no mesmo lugar, que pra gente já era sagrado. Fincava suas estacas num campinho, ao lado da escola. E só isso já tornava a vida mais atraente.

O certo é que, com a presença daquela fantástica atração nômade, nossas conhecidas brincadeiras do recreio da tarde perdiam a vez para uma observação deliciosa. Do portão lateral, nós alunos assistíamos a uma outra espécie de apresentação. É que nessa hora do dia a trupe circense tocava a vida. Estendia roupa, varria o chão, coisas do cotidiano. E nós, crianças, ficávamos imaginando que aquelas pessoas eram espécies de super-heróis disfarçados. Como se guardassem o melhor, o incrível e o improvável para mais tarde, a hora do espetáculo.

Curioso foi que, numa dessas inebriantes temporadas, eu recebi – até hoje não sei bem o porquê – a benção de poder ir à matinê de domingo com minhas amigas. Sem pais, prima mais velha ou coisa correspondente. Isso sim era um grande acontecimento!

Então lá fui eu, desfilando meu preferido vestido azul de bolinhas brancas com uns enfeitinhos vermelhos, presente da minha avó. Nunca tinha saído assim, com tanta liberdade. Quase desmaiei quando, logo na entrada do circo, dei de cara com a macaca, que se me lembro bem se chamava Efigênia. Eu nunca tinha visto uma macaca assim, tão de perto. Toda linda, estava no colo de uma das artistas, recepcionando o público.

Mas inebriante mesmo foi quando o show começou pra valer. Um desfile de atrações maravilhosas – que hoje sei que eram tão simples, sob aquela cobertura incrementada com remendos. Não tinha charanga (daquelas que tocavam a noite inteira), mas uma bandinha que animava a cena com muito mérito. Tinha um malabarista e suas garrafas coloridas, e um trapezista franzino, que rodopiava no ar enquanto a plateia botava o coração pra fora. Óbvio que a gente curtia com gosto cada segundo daquele universo tão diferente de nossa vidinha de feijão com arroz.

E para completar minha tarde de magia, tive até um momento de estrelato. Fui finalista no concurso de dança orquestrado pelo palhaço barrigudo, que de minuto em minuto parava a música e eliminava as pobrezinhas que julgava não serem pés de valsa. Quando me dei conta, estava entre as duas últimas colocadas.

      – É ela?
        – Não!
        – É ela?
        – É!

        Uma colega de sala, de rua, de tudo, foi a vencedora.  E eu cintilei com o segundo lugar, que me rendeu um esplendoroso prêmio: um ingresso para outra apresentação do circo! Não podia haver recompensa maior. Aliás, podia sim: a fama que me seguiu por meses. Minha performance de vice correu a cidade e depois daquela matinê virei praticamente uma artista. Cheguei até a receber convites para me apresentar nas festinhas que animavam nossos fins de domingos. Uma verdadeira Ginger Rogers mambembe.

Talvez eu vá conferir o espetáculo do grande e novo circo, que é climatizado e vende ingressos pela internet. Quem sabe eu encontre por lá uma garotinha magrinha, com olhos brilhantes e vidrados no picadeiro? Talvez ela esteja lá, só esperando a música tocar para sair dançando. Quem sabe? 


Cíntia Nascimento