–
Pai, que horas são?
–
São cinco horas. Por quê?
Como
assim, “por quê”? Não era óbvio? Aquela era a data mais especial de todas: 24
de dezembro, a fabulosa véspera de Natal. Digamos que, durante os primeiros dez
anos da minha infância, a vida se resumia em a véspera de Natal e o resto. Mas
o melhor de tudo não era o dia e sim a noite, quando o presente aparecia. Só
que naquele ano as horas estavam se arrastando, pareciam paradas mesmo. E eu
ali, esperando sentada no banquinho da cozinha, contando os segundos para o
momento mágico.
O
fato é que eu tinha oito anos de idade e desde fevereiro já sabia o que queria
do bom velhinho: a boneca Emília do “Sítio do Picapau Amarelo” – se ele
trouxesse junto um par de patins (podia ser de plástico, mesmo), eu também
ficaria muito grata. Mas não queria uma Emília daquelas fakes, feitas à mão (que hoje acho lindas). Nada disso. Tinha que
ser a da Estrela, com correntinha, medalhinha e tudo.
Pois bem. Depois de
cumprir uma maratona que incluiu muita lição de casa sem reclamar, obediência à
avó, pai, mãe e primas, horas vigiando para que meu irmão caçula não se
estabacasse da escada ou de qualquer outro lugar ameaçador, louça lavada e roupas
estendidas no varal, meus pais deram o veredicto: eu ganharia a Emília! Nem
acreditei.
Nisso
já era dezembro. Todas as colegas da escola e da vizinhança receberam com gosto
(e com uma certa inveja, é claro) a notícia de que eu seria a futura
proprietária da famosa e espevitada boneca que fazia parte de nossos mais puros
sonhos:
–
Será que ela fala de verdade? – perguntou Marcinha.
–
Acho que não. Mas não tem importância. Eu falo por ela – respondi.
Então
passei os dias a imaginar as mil e uma aventuras que viveria com minha Emília:
subir no pé de laranjeira do quintal da minha avó, pular amarelinha, brincar de
esconde-esconde. Também poderia carregá-la na garupa da bicicleta, servir chazinho
e fazer comidinha no meu minifogão de lenha. E ainda nadar na piscina. “Não. Na
piscina não pode. Ela é feita de pano”, lembrei a tempo.
Daí
que aquele último mês do ano não tinha fim. Até caminha pronta, com cobertor e
tudo, já esperava por Emília. Mas o dia 24 parecia ter fugido do calendário de
1979, até que enfim chegou. Custou, é verdade, mas raiou azul, fresco, iluminado,
como os dias especiais devem ser.
Nem bem amanheceu e
eu já estava de pé para o tradicional e inesquecível passeio com o padrinho. É
que ele levava a sobrinhada toda pra comprar um presentinho no Natal. Podia ter
coisa mais gostosa? Depois, o almoço simples, em casa mesmo. “Nada de comer
muito agora. O melhor fica pra de noite”, era o que sempre dizia minha mãe. Mas e esse “de noite” que não chegava?
– Pai, que horas
são?
– Filha, você
acabou de perguntar. São cinco e quinze.
Que remédio? Tinha
que me segurar pra não explodir de ansiedade, até por volta das nove da noite,
quando o nosso Papai Noel passava, deixava os presentes e partia antes que a
gente pudesse agradecer. É verdade que
naquele ano eu já sabia que o Noel era meus pais mesmo. Por acaso, no Natal
passado, eu tinha com tristeza constatado que uma caixa grande, coberta por uma
toalha, colocada em cima do guarda-roupa da minha mãe, apareceu milagrosamente
embaixo da minha cama. “Foi o Papai Noel!”, anunciaram. Mas somei dois mais dois
e vi desmoronar meu mundinho natalino. Tampouco dei sinal da descoberta para
não magoar meus pais e não acabar com a festa do meu irmão. Porém meu Papai
Noel partiu para sempre com trenó e renas a tiracolo.
Mas quem se
importava com isso? Eu queria saber era da Emília. Depois que voltamos do beijo
de boas festas na casa de minha avó, os convidados começaram enfim a chegar
para a ceia. Apenas dois ou três casais amigos.
– Nossa! Como você
cresceu! – repetia a amiga da minha mãe, como em outros natais.
Agradeci sem nem olhar na cara dela. “Cadê a
Emília?”, era só o que eu pensava.
Conversa vai e volta, uma comilança só – que em Minas, não há miséria – ,
e nada de boneca de pano. Lá estava eu esperando de novo sentada, pés
inquietos, nervos pelo avesso. Até que meu pai despistou e deu aquela conhecida
saidinha da sala. Agora vai! Fechei os olhos e contei comigo até dez, vinte,
sessenta. E já ia desistindo quando ouvi os berros do meu irmão:
– O Papai Noel
passou! O Papai Noel passou!
Atropelei o que
havia pela frente: cadeira, pé de visita, vaso, almofada. Inacreditável como mergulhei
de cabeça embaixo da minha cama e me deparei com aquela espécie de miragem. Mais
parecendo um diabo da Tasmânia, rasguei o papel de presente da conhecida loja
de brinquedos da cidade. Pronto: estava cara a cara com minha Emília. Minha, só
minha. Abracei a boneca, beijei, rodopiei, ri sozinha e depois a exibi
orgulhosa para todos que estavam lá em casa. Enfim ela havia chegado para
alegrar meus dias e era muito mais do que eu tinha imaginado. Cabelo de lã
amarela e vermelha, vestidinho amarelo com babado, olhos arregalados e uma boca
bem vermelhinha, com a língua quase para fora. Um sonho!
Verdade é que logo
deixei a Emília de lado, sentadinha na cadeira, pra abrir outros presentinhos,
incluindo os patins de plástico (com os quais nunca consegui sair do lugar)! Até
me distraí, confesso. A euforia tinha passado. Coisas de criança. Mas, apesar
de entretida com outras novidades, sempre dava uma espiada pra ver se Emília
não tinha fugido.
E não fugiu.
Durante todos estes anos me acompanhou de cidade em cidade, de faculdade a
trabalhos, de namoros a casamento, de vazios à alegria de ser mãe. E olha que
continua sentadinha. Só que agora está na prateleira de cima do armário, esperando
para ser lembrada. Não sabe que nunca foi esquecida.
Cíntia Nascimento