sexta-feira, 28 de junho de 2013

Aquela espera






Era aquela espera.
Pé na janela,
Café na capela campestre.
Caneca amarela aquece.

Era aquela espera.
Fé, vela, reza.
Festa etérea, singela.
Alegre, elétrica, eterna.

Era aquela espera.
Férias silvestres, galera.
Terra coberta, canela e macela.
Alegra, eleva, impera.

Era aquela espera.
Cresce, não esquece.
Entrega uma prece,
Adormece quieta,
Descoberta, amanhece.  


Cíntia Nascimento

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Apenas Neide





Neide era o nome dela. E chegou lá em casa encabulada, daquele jeito de quem passa a vida pedindo desculpas por ter vindo ao mundo. Era para ser diarista, recomendada pelo zelador: ”É de muita confiança”, garantiu. E era mesmo. Neide trazia a confiança estampada no jeito e na cara da cor da Bahia. 

O bom é que foi ficando. Duas vezes por semana, eu tinha a alegria suprema da dona de casa que pode ter alguém para ajudar. O chato era que Neide não era de conversa. Entrava quieta, saía em silêncio. Logo descobri que seu forte eram os gestos. Isso foi quando chegou com um maço de folhas para chá, que comprou na feira perto de sua casa: “É para sarar a tosse do menino”, receitou. Outra vez, trouxe de casa um pouco do produto que usava para passar no chão: “Deixa a casa cheirosa”, sentenciou como especialista que era.

Claro que eu queria saber mais sobre Neide. Meus cafés das terças e quintas eram acompanhados de uma observação minuciosa de sua postura passando roupa. Ela alisava cada peça com uma concentração de quem analisava a vida, lembrava o passado, temia o futuro.  É óbvio que percebia meu interesse, mas fingia que não. Até que, cansada de tanta curiosidade, resolveu falar.

E foi contando. Caprichou no sotaque com cheiro de cacau para contar que há alguns anos tinha deixado o casal de filhos com a mãe na roça, perto de Feira de Santana, para fugir daquela que chamavam de vida e sobreviver em São Paulo. Assim como fizeram e fazem seus irmãos de sangue e de terra. Depois de muita roupa passada e casa encerada, conseguiu trazer os filhos pra perto dela. E como ela cuidava daqueles filhos de mãe solteira! O menino, coitado, tinha que bater o ponto todo dia, ligando para ela assim que chegava da escola. Já a moça, em idade perigosa, era todas as noites escoltada por Neide, da saída do colégio até em casa – casa que Neide conseguiu comprar juntando o dinheiro que escavou na pauliceia. “O Senhor me ajudou!”, não cansava de repetir. Aliás, o auge de seus passeios era ir ao culto na igreja evangélica, nos fins de semana. Por isso não foi difícil entender sua angústia quando, tempos mais tarde, veio me contar que a garota estava grávida, aos 17 anos, repetindo uma trajetória que ela conhecia bem.

Mas havia dias em que Neide era insuportavelmente compenetrada. A cara amarrada denunciava os percalços que carregava sozinha nas costas, sem pausa pra descanso. E instalava-se aquele silêncio absoluto que nem o estrondoso aspirador de pó conseguia quebrar.  Eu até arriscava umas historinhas engraçadas, mas nada. Nem um vestígio de alegria. Nestas ocasiões, até minha gata, dada que só vendo, não era muito de ousadias com Neide. Seu sexto sentido felino avisava que era melhor ficar longe. Nos dois anos em que trabalhou lá em casa, se vi Neide sorrir umas cinco vezes foi muito. E quando por um milagre isso acontecia, eu festejava, sem ela saber, é claro. Mas longe de ser uma pessoa triste. Era apenas Neide. 

Quando contei que teria que me mudar para outra cidade, vi a tristeza nos olhos de Neide e fiquei feliz. Não feliz por sua tristeza, mas por constatar que ela gostava de mim, apesar dos anos de rabugice. E então me ajudou a encaixotar prato por prato, livro por livro, lembrança por lembrança. Fiz questão de deixar com ela um pouco de tudo. E hoje me conforta saber que deve se lembrar de mim, nas pequenas coisas do dia a dia. Quando pega uma panela, quando veste uma blusa para ir à igreja e, principalmente, quando vê sua neta se divertindo com os brinquedos que ganhou lá em casa. No dia da minha partida, largou os afazeres da casa da vizinha para ir me dar um abraço de despedida. Mas nada de lágrimas, lamentos, fricotes. Nada disso. Apenas um abraço. Um abraço de quem estava acostumada com perdas. Um abraço de Neide. 

Vida que segue e eu já não vejo nem falo com Neide há mais de dois anos. Mas soube que ela está bem, apesar de mais fraca. É que, quando parti, carreguei comigo um pouco de sua força. Mas só porque sabia que não ia lhe fazer falta. Ela tem de sobra.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Emília





       – Pai, que horas são?

       – São cinco horas. Por quê?

       Como assim, “por quê”? Não era óbvio? Aquela era a data mais especial de todas: 24 de dezembro, a fabulosa véspera de Natal. Digamos que, durante os primeiros dez anos da minha infância, a vida se resumia em a véspera de Natal e o resto. Mas o melhor de tudo não era o dia e sim a noite, quando o presente aparecia. Só que naquele ano as horas estavam se arrastando, pareciam paradas mesmo. E eu ali, esperando sentada no banquinho da cozinha, contando os segundos para o momento mágico.

       O fato é que eu tinha oito anos de idade e desde fevereiro já sabia o que queria do bom velhinho: a boneca Emília do “Sítio do Picapau Amarelo” – se ele trouxesse junto um par de patins (podia ser de plástico, mesmo), eu também ficaria muito grata. Mas não queria uma Emília daquelas fakes, feitas à mão (que hoje acho lindas). Nada disso. Tinha que ser a da Estrela, com correntinha, medalhinha e tudo.

Pois bem. Depois de cumprir uma maratona que incluiu muita lição de casa sem reclamar, obediência à avó, pai, mãe e primas, horas vigiando para que meu irmão caçula não se estabacasse da escada ou de qualquer outro lugar ameaçador, louça lavada e roupas estendidas no varal, meus pais deram o veredicto: eu ganharia a Emília! Nem acreditei.

     Nisso já era dezembro. Todas as colegas da escola e da vizinhança receberam com gosto (e com uma certa inveja, é claro) a notícia de que eu seria a futura proprietária da famosa e espevitada boneca que fazia parte de nossos mais puros sonhos:

       – Será que ela fala de verdade? – perguntou Marcinha.

       – Acho que não. Mas não tem importância. Eu falo por ela – respondi.

       Então passei os dias a imaginar as mil e uma aventuras que viveria com minha Emília: subir no pé de laranjeira do quintal da minha avó, pular amarelinha, brincar de esconde-esconde. Também poderia carregá-la na garupa da bicicleta, servir chazinho e fazer comidinha no meu minifogão de lenha. E ainda nadar na piscina. “Não. Na piscina não pode. Ela é feita de pano”, lembrei a tempo.

    Daí que aquele último mês do ano não tinha fim. Até caminha pronta, com cobertor e tudo, já esperava por Emília. Mas o dia 24 parecia ter fugido do calendário de 1979, até que enfim chegou. Custou, é verdade, mas raiou azul, fresco, iluminado, como os dias especiais devem ser.

 Nem bem amanheceu e eu já estava de pé para o tradicional e inesquecível passeio com o padrinho. É que ele levava a sobrinhada toda pra comprar um presentinho no Natal. Podia ter coisa mais gostosa? Depois, o almoço simples, em casa mesmo. “Nada de comer muito agora. O melhor fica pra de noite”, era o que sempre dizia minha mãe.  Mas e esse “de noite” que não chegava?

– Pai, que horas são?

– Filha, você acabou de perguntar. São cinco e quinze.

Que remédio? Tinha que me segurar pra não explodir de ansiedade, até por volta das nove da noite, quando o nosso Papai Noel passava, deixava os presentes e partia antes que a gente pudesse agradecer.  É verdade que naquele ano eu já sabia que o Noel era meus pais mesmo. Por acaso, no Natal passado, eu tinha com tristeza constatado que uma caixa grande, coberta por uma toalha, colocada em cima do guarda-roupa da minha mãe, apareceu milagrosamente embaixo da minha cama. “Foi o Papai Noel!”, anunciaram. Mas somei dois mais dois e vi desmoronar meu mundinho natalino. Tampouco dei sinal da descoberta para não magoar meus pais e não acabar com a festa do meu irmão. Porém meu Papai Noel partiu para sempre com trenó e renas a tiracolo.

Mas quem se importava com isso? Eu queria saber era da Emília. Depois que voltamos do beijo de boas festas na casa de minha avó, os convidados começaram enfim a chegar para a ceia. Apenas dois ou três casais amigos.

– Nossa! Como você cresceu! – repetia a amiga da minha mãe, como em outros natais.

 Agradeci sem nem olhar na cara dela. “Cadê a Emília?”, era só o que eu pensava.  Conversa vai e volta, uma comilança só – que em Minas, não há miséria – , e nada de boneca de pano. Lá estava eu esperando de novo sentada, pés inquietos, nervos pelo avesso. Até que meu pai despistou e deu aquela conhecida saidinha da sala. Agora vai! Fechei os olhos e contei comigo até dez, vinte, sessenta. E já ia desistindo quando ouvi os berros do meu irmão:

– O Papai Noel passou! O Papai Noel passou!

Atropelei o que havia pela frente: cadeira, pé de visita, vaso, almofada. Inacreditável como mergulhei de cabeça embaixo da minha cama e me deparei com aquela espécie de miragem. Mais parecendo um diabo da Tasmânia, rasguei o papel de presente da conhecida loja de brinquedos da cidade. Pronto: estava cara a cara com minha Emília. Minha, só minha. Abracei a boneca, beijei, rodopiei, ri sozinha e depois a exibi orgulhosa para todos que estavam lá em casa. Enfim ela havia chegado para alegrar meus dias e era muito mais do que eu tinha imaginado. Cabelo de lã amarela e vermelha, vestidinho amarelo com babado, olhos arregalados e uma boca bem vermelhinha, com a língua quase para fora. Um sonho!

Verdade é que logo deixei a Emília de lado, sentadinha na cadeira, pra abrir outros presentinhos, incluindo os patins de plástico (com os quais nunca consegui sair do lugar)! Até me distraí, confesso. A euforia tinha passado. Coisas de criança. Mas, apesar de entretida com outras novidades, sempre dava uma espiada pra ver se Emília não tinha fugido.

E não fugiu. Durante todos estes anos me acompanhou de cidade em cidade, de faculdade a trabalhos, de namoros a casamento, de vazios à alegria de ser mãe. E olha que continua sentadinha. Só que agora está na prateleira de cima do armário, esperando para ser lembrada. Não sabe que nunca foi esquecida.


Cíntia Nascimento

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Cada palavra






Cada palavra fala e cala.
Clara, rara, afaga.
Frágil, máxima, esmaga.

Cada palavra fala e cala.
Baixa, amada, abraça.
Alta, brava, amassa.

Cada palavra fala e cala.
Fácil, compacta, ampara.
Na sala, na cara, dispara.
Na alma, cansada, embala.
Mas sádica, macabra, mascara.

Cada palavra fala e cala.
Mágica, açucara, enfática.
Trágica, gargalha, dramática.

Cíntia Nascimento